O amor a partir do que não existe 1 

Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Literatura 2
Comentário: Ana Viganó


Fred Stapazzoli, sem título, 2022 [Estudo de monotipia pictórica a óleo sobre A3]

Walter Benjamin nos deixou um testemunho decisivo e crucial para o que seria denominado de contemporâneo quando nos afirma haver uma crise na experiência, uma pobreza no relato da experiência. Traz à tona a parábola de um velho que, no leito de morte, revela aos filhos a existência de um tesouro oculto nos seus vinhedos. Bastava desenterrá-lo. Os filhos vão à loucura tentando desenterrar e achar o bendito tesouro, e nada encontram. No outono, porém, algo acontece: as vinhas produzem mais que qualquer outra da região. Aí compreendem a fala do pai: a felicidade não está no dinheiro, mas no trabalho duro. O pai havia transmitido uma experiência. Benjamin escreve o texto em 1933, alguns anos após o fim da Primeira Guerra, quando os combatentes voltavam mudos e sem histórias para contar, e é o ano em que Hitler sobe ao poder na Alemanha. O horror continuaria com o Holocausto e a Segunda Guerra, recebendo a seguinte leitura de Adorno: após tudo isso, seria impossível fazer poesia. Alguns anos depois, Georges Didi-Huberman partirá de uma outra perspectiva ao dizer ser justamente a partir desse silêncio, dessa pobreza da experiência simbolizada no mutismo, que poderemos produzir alguma coisa. É uma tarefa nossa. O ato de escrever presentifica o desejo de fazer passar algo que não faz série e recolocar o real sem recobri-lo. Isso que ressoa e resta postula-se como possibilidade de leitura do sintoma, em contraposição à decifração do texto inconsciente, acercando-se do sentido. Dessa forma, a decifração estaria ancorada na verdade e a leitura, por sua vez, na opacidade do real. 

Foi em cima dessa tarefa que o Núcleo de Psicanálise e Literatura se debruçou este ano. “O que é um autor?” foi a pergunta que percorreu nossos encontros, tendo em vista a problemática apresentada logo acima a partir dos conceitos de obra, autoria e ato. Se no primeiro exemplo, do tesouro, podemos dizer que haveria uma história a ser contada após o florescimento das vinhas, quem seria o autor dessa transmissão? As histórias contadas oralmente sob forma de provérbios, na mesa do almoço de domingo em família, dos avós para os netos, para os recém-nascidos dormirem, as cantigas de infância, e o que vai sendo transmitido de formas muitas vezes desconexas: de onde veio, quem começou? Continuamos a fazer sem saber. 

Foucault no texto homônimo a nossa pergunta nos coloca um princípio fundamental da ética da escrita contemporânea: não se trata tanto da expressão de um sujeito específico, mas da abertura de um espaço no qual o sujeito que escreve não para de desaparecer.3 Por sua vez, Giorgio Agamben vai postular o autor como um gesto ao dizer: "Se chamarmos de gesto o que continua inexpresso em cada ato de expressão, poderíamos afirmar então que, exatamente como o infame, o autor está presente no texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida em que nela instala um vazio central."4 Assim, podemos pensar a escrita como ética do ato, na medida em que ela é ruptura e o autor não é senhor do seu discurso. Ato esse que, como bem diz Lacan, só será possível afirmar haver uma estátua em potência no mármore no só depois, no depois da estátua feita. 

É nesse vazio central, o vazio que, lido pela psicanálise, pode ser o vazio da intersecção entre linguagem e ser falante, uma leitura lógica na qual o "comum" entre os dois é vazio, apontando-nos que não há elementos comuns entre os dois. Não estaria aí nesse vazio central o amor e, com isso, também o seu avesso? Lembramos que com Lacan, amar é dar o que não se tem. Em Ler um sintoma, Miller vai partir desse não comum para afirmar que "a leitura, o saber ler, consiste em manter à distância a palavra e o sentido que ela veicula, a partir da escrita como fora de sentido, [...] como letra, a partir de sua materialidade"5

Sob esse prisma, não é à toa que o próprio Miller vai partir desse vazio após receber de Lacan a incumbência de passar os seminários do oral ao escrito, chamando de estabelecimento de um texto cujo original não existe. Se o original não existe, "essa origem será encontrada mais tarde em uma escrita, uma escrita da fala de outro"6. O que bem poderia ser uma definição do amor na psicanálise: a Orientação Lacaniana, com os seminários de Lacan, um original que não existe, e da leitura feita por Jacques-Alain Miller dessa passagem do oral ao escrito. E é com essa passagem que pode ocorrer uma transmissão e o estabelecimento de uma origem, na etimologia arché, ou seja: não a descoberta do primeiro texto, fundador e causa de repetição futura, mas de uma origem enquanto irrupção, quando algo esburaca, aparece e fura a continuidade. Esse rompimento pode fazer surgir um nome que não é amo de ninguém, um nome paradoxal, um nome do encontro falhado. 

Para nos lembrar desse furo, Miller conta na entrevista a François Ansermet sobre o estabelecimento dos Seminários de sua escolha em não utilizar, de maneira voluntária, o ponto e vírgula e os dois pontos, mas sim um sinal ambíguo, um sinal de pausa distinto do ponto e vírgula, o travessão. Sabemos que toda pontuação dá o sentido para a leitura que se está fazendo e o travessão é um traço que resta como a marca dessa origem oral dos seminários. Dessa forma, essa relação de amor para com a psicanálise irrompe o que não há de comum e possibilita, com isso, um novo laço a partir da transmissão. 

 

Comentário  

Ana Viganó (NEL/AMP)  

Vou começar com o texto “O amor a partir do que não existe”. Trago algo que seguramente todos conhecem, mas que me parece ser lindo para recordar aqui: é sobre o gesto, mencionado no trabalho como o autor no gesto. Vou recordar, então, uma anedota relatada por Suzanne Hommel, colega da ECF/AMP, que fez sua análise com Lacan. Está no YouTube e vocês podem procurar o vídeo. Relatarei brevemente o que quero extrair do fragmento comentado por ela. Suzanne diz: "Sou da Alemanha e nasci em 1938". Quer dizer, o texto do Núcleo evoca, ademais, muitas referências à guerra, à perseguição e ao Holocausto. Assim se poderia ou não escrever algo disso, o que se pode fazer depois do que vivemos, quiçá com isso podemos escrever de outra maneira. Hommel é uma sobrevivente.  

“Sou da Alemanha", retomo o relato, "e nasci em 1938 e, por isso, vivi os anos da guerra, cheios de horror e angústia e, logo depois, os anos do pós-guerra, a fome e as mentiras. É por isso que sempre quis sair da Alemanha. Em uma das primeiras sessões, perguntei a Lacan se era possível curar-me desse sofrimento. Ao dizer, já sabia a resposta: não. Eu tinha a ideia de que essa dor poderia ser removida com a análise, porém ele me olhava de uma maneira fazendo-me entender que não, eu teria de viver com isso toda a vida. Um dia, em sessão, falei a Lacan de um sonho. Eu lhe disse: eu me desperto todos os dias às cinco da manhã, e acrescentei, às cinco da manhã a Gestapo vinha buscar os judeus em suas casas. Nesse momento, Lacan se levanta como uma flecha de sua poltrona, vem até mim e me faz uma carícia extremamente terna sobre minha face. Eu compreendi geste à peau em francês, gesto na pele, gestapô, usando a materialidade do significante." Gérard Miller, o entrevistador no momento, interrompe e diz: ele transformou Gestapo em geste à peau, gesto na pele.  

"Um gesto terno", disse Suzanne, "é necessário dizer essa surpresa, é certo que não me fez diminuir a dor, mas me fez algo. A prova é que agora, quarenta anos depois, volto a contar isso. Esse gesto, eu o tenho ainda sobre minha face. Este gesto é também um chamado à humanidade, algo assim”. Fim da anedota em relação a quem é o autor dessa transformação de Gestapo em geste à peau, quem escreve esse significante, a palavra e o gesto na face, escreve ela ou escreve Lacan? Isso é amor ou não? Essa ternura, esse chamado à humanidade que não cura a dor, mas faz algo. Essa intervenção faz uma ruptura, apontando para outra ruptura traumática. Uma origem disruptiva de uma iteração que não cessa e traz dor. Quando algo aparece e perfura, esburaca a continuidade, algo da mesma ordem se impõe, perfurando e esburacando a continuidade, voltando aos buracos. Estabelecendo então um texto novo, geste à peau, não com um texto original que não existe, mas contendo uma marca, Gestapo, um texto que se escreve com marcas soltas, peças soltas, existentes e seguem existindo, não se trocam, abandonam ou terminam, mas com elas se pode fazer uma invenção.  

O trabalho de vocês traz a invenção de Jacques-Alain Miller para se apropriarem desse texto e, ainda assim, fazer dele um guia, como signo da oralidade que existe, marca escrita da oralidade, paradigma do que fazemos em uma análise, escrever sobre o que escutamos. Ler no que se escuta para produzir uma escrita. Marcas soltas articuladas de outra maneira, que não borram a existência original, mas fazem, como dizia Suzanne, outra coisa. Podemos tomar uma citação que está no segundo texto desta mesa, que é de J.-A. Miller e se relaciona com a invenção psicótica, voltando de forma paradigmática ao último ensino de Lacan. “O acento da invenção é, nesse caso, de uma criação a partir de materiais já existentes. Eu daria de bom grado à invenção o valor de bricolagem”. Nesse caso, é claro que a invenção inclui a materialidade existente do significante que marcou a vida do sujeito. Materialidade como a mola para abrir uma possibilidade sobre um fundo de impossível. É impossível borrar essas marcas, como às vezes é impossível borrar o afeto contido, mas ainda assim podem ser usadas. Quiçá esta é a perspectiva de autor que temos, quando fazemos de nosso trabalho um esforço de poesia, usar de outro modo as marcas indeléveis sob a perspectiva da invenção.  
 

Transcrição e tradução: Eneida Medeiros Santos
Revisão: Gustavo Ramos da Silva 


1. Artigo elaborado para a Conversação entre Núcleos, “Amor e seu avesso: novos laços”, realizada pelo ICPOL em 27 de novembro de 2021. O trabalho foi comentado por Ana Viganó, analista, membro da Nueva Escuela Lacaniana (NEL-México) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e sua transcrição, autorizada e revisada pela autora, acompanha o texto.

2. Texto escrito coletivamente pela equipe de coordenação do Núcleo: Eneida Medeiros Santos, Gresiela Nunes dRosa e Gustavo Ramos da Silva. Com as contribuições de Adriana Prosdocimi, Ana Maria Alves de Souza, Cinthia Busato, Daniel Félix, Eneida Medeiros Santos, Franciele Theves da Rosa, Francine Murara, Gabriel Bueno, Gislaine de Paula, Gresiela Nunes da Rosa, Gustavo Ramos da Silva, Jussara Jovita Souza da Rosa, Ketlle Paes, Mariana Vogt, Marta Sakiyama, Paula Nocquet, Rafael Maester, Tainã Pinheiro. 

3. AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: Profanações. Trad. de Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 55.

4. Ibid, p. 59. 

5. MILLER, Jacques-Alain. Ler um sintoma. Trad. de Teresinha N. Meirelles do Prado. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Edições Eolia, núm. 70, jun. 2015. p. 9.

6. MILLER, Jacques-Alain. Entrevista sobre 'O Seminário' com François Ansermet. In: Opção Lacaniana On-line, núm. 6, nov. 2011. p. 9.

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