Flora e os ditosadictos1  

NIPTA2 
Comentário: Ana Viganó


Fred Stapazzoli, sem título, 2023. [Matriz de monotipia]
 

O NIPTA é um Núcleo de Investigação psicanalítica em toxicomania e alcoolismo. Seu objetivo é interrogar acerca do tema das toxicomanias e adicções sempre levando em conta a singularidade da clínica.  

Durante o ano de 2021 nos conectamos ao tema do “amor” orientados pela preparação do X Enapol, que teve por tema: “O novo no amor - modalidades contemporâneas dos laços”. Nosso trabalho é bastante ligado aos eventos do Campo freudiano e da rede Tya.  

Nos perguntamos sobre o amor nas/das toxicomanias: o laço de amor é possível nas toxicomanias?  

J.-A. Miller em “A teoria do parceiro”3 diz que as toxicomanias são paradigmáticas do nosso tempo, pois trata-se de um “anti-amor” bem mais que laço de amor. Miller explica que sua teoria está baseada em fazer do objeto a uma bússola, quer dizer, é aquilo que orienta o sujeito, inclusive no amor. Ora, não podemos negar que as toxicomanias portam o objeto de entrada. Trata-se de amar o efeito do uso do objeto, o que Lacan esclarece como mais-de-gozar? Trata-se de amar esse efeito como um parceiro, a ponto de ser esse o parceiro essencial do sujeito?   

Se seguirmos estas pistas, há um laço com o objeto que tem, muitas vezes, uma função imprescindível. Então, como dizer disso, ou melhor, como ler o que o dito adicto diz disso?  

Por fim, antes de entrar no caso Flora, gostaríamos de colocar ainda uma questão. Quem são os adictos dos quais estamos tratando?  

Achamos importante essa pergunta, pois na prática cotidiana encontramos cada vez mais endereçamentos de tratamentos da adicção. A pandemia e o isolamento são frequentemente associados ao aumento do uso do tóxico e em consequência a busca de tratamento, mas certamente não a única. Quando Miller faz da toxicomania um paradigma da época, é de certo modo o que nos anuncia: a toxicomania faz parte do laço social contemporâneo, então quem é o adicto?  

Para tentarmos abordar essa questão, nosso tema deste ano foi enunciado como “O (anti) amor dos ditosadictos”. Formulamos esse sintagma, ditosadictos, que pode ser lido de diversas maneiras:  

1) a adicção é um efeito de/do discurso;  

2) pode haver adicção ao dizer (à palavra);  

3) o dito se dirige ao próprio dito, ou seja há um vazio que se quer preencher;  

4) isso que se quer preencher sem cessar é adictante;  

5) o sentido é aquilo que pode vir, na mesma função que a droga ou objeto, tentar preencher o vazio;  

6) este tipo de adicção pode ser generalizada, inerente à fala.  

Ainda trazemos um dado curioso sobre a prática. É perceptível o aumento de casos de mulheres, buscando atendimentos em centros de saúde e em consultórios particulares. Há um aumento de casos de toxicomania nas mulheres. Será que elas estão se autorizando mais a buscarem atendimentos?  

Flora: dependência e/ou toxicomania?  

Flora iniciou o tratamento para seu sofrimento por volta dos 25 anos. Percebeu conhecidos seus com problemas com tóxicos e se identificou assumindo ter estes mesmos problemas.  

A vida de Flora é marcada desde a infância pelo trauma do gozo excessivo que vem de um outro. Como por exemplo eventos de violência sexual que para ela foram marcantes e que jamais puderam ser ditos. Ela não consegue falar desses fatos traumáticos aos pais e acha que não havia deles um olhar atento a ela.  

Flora deposita sua confiança em uma pessoa próxima da família. Esse próximo à sua escuta é uma referência para ela. Acontece que em um dado momento ela lhe confia detalhes desses atos de violência. Logo vem a crença de ter falado demais. Não demora para que Flora interprete a sua própria fala como excessiva. Ela pensa que essa fala poderia ter sido tóxica. Flora atribui à sua fala a causa dos problemas que se sucedem a essa pessoa, e que eventualmente levam à sua morte. Nesta época, Flora começa o uso de substância como forma de lidar com sua dor e possibilitar “dar conta” de cuidar desta pessoa em seus momentos finais. 

Com o imperativo de dar conta de tudo na família, ela se ocupa das tarefas domésticas, filhos e trabalho. Flora usa quantidades consideráveis de substância legalizada. Mas, enquanto via pouco o marido, o pacto do casamento se mantinha e tudo funcionava mais ou menos bem. 

Passados alguns anos, começam a se ver mais, o pacto do casamento muda e começa a incomodá-la. Incentivada pelo saber médico, ela procura buscar outras coisas que não o uso de substâncias para se ocupar e sair de perto do marido, sem de fato se separar.  

Fora da família, Flora se envolve com novas atividades e aprende uma nova habilidade que ocupará um lugar central na sua vida. Em dias bons, atarefa-se com suas atividades. Assim ela encontra uma forma de “dar voz a quem não tem voz”, ocupando uma posição de “mãe” de todos.  Gosta de ajudar os outros, mas muitas vezes a demanda do outro a pesa. Gosta também de praticar exercícios físicos que a acalmam. Quando isso não é possível, ela recorre ao abuso de substância ou se corta.  

Ao longo do tratamento ela começa a perceber o absurdo de certos pedidos dos outros e a se impor perante a demanda descabida, colocando limites a si mesma. Repete uma intervenção da praticante de psicanálise após um período com diversas faltas e cancelamentos: você disse que preciso de pelo menos um horário da semana para minha análise, e é verdade, pelo menos esse horário vou reservar para mim. 

Com essa mudança de posicionamento, o casamento também vem se atualizando. Passa a ignorar as demandas do marido que se diz dependente dela - “não posso viver sem ela”, é a frase dele que ela destaca. Flora percebe também, ao longo dos atendimentos, que abusa de sustância em situações em que lhe demandam excessivamente.  

Como esse caso pode nos ensinar sobre o amor e o anti-amor nos ditos adictos? Flora tenta prescindir do marido demandante: é feminina, se arruma para si própria, paga suas contas, inclusive ganha mais que ele e é melhor sucedida profissionalmente. Mas espera dele a iniciativa de sair de sua casa. Poderíamos pensar nesse casamento como uma dupla dependência? Ela precisaria do casamento para continuar atarefada e frustrada, e assim, continua usando a substância enquanto, na outra via, o marido seria “dependente” dela?  

Comentário  

Ana Viganó (NEL/AMP)  

O trabalho “Flora e os ditosadictos” nos traz questões importantes no campo das toxicomanias. Primeiro é a diferença, se há, entre as adicções e as toxicomanias. A adicção e o gozo toxicômano ou o gozo toxicômano como tal, o gozo toxicômano! Essa é uma das vias que quero comentar. A outra é uma questão muito teórica que desenvolvi antes e seguem desenvolvendo na rede Tya. A questão das toxicomanias e adicções e toxicomanias e alcoolismo. No nome da rede não entram as adicções como conceito. Na realidade é uma questão importante sobre a substância. As toxicomanias e alcoolismo incluem a substância tóxica como tal. As adicções podem incluir outros elementos que não necessariamente a substância tóxica. É essa distinção que vocês fazem no trabalho. As adicções à palavra, ao sentido, o que me parece muito importante. As adicções são um campo mais amplo que não incluem as substâncias. As toxicomanias incluem o tóxico. E o alcoolismo, a rede Tya trabalhou as suas particularidades, inclui as substâncias tóxicas.  

A substância tóxica pode ser qualquer uma. Tóxica por si mesma como as drogas legais, as drogas ilegais. Por exemplo, no México, se trata de trabalhar certo uso do açúcar como um problema de toxicidade. Propõem uma toxicidade com uma substância particular. Fabian Naparstek tem um caso clássico, já conhecido por suas intervenções, onde o tóxico era a água, pois a água era prejudicial para este sujeito. Ao contrário de ser para a sua saúde, a água em excesso era seu tóxico. Quer dizer que a substância tem a ver com toxicomania e a adicção não necessariamente requer uma substância. Em todo caso, é a substância gozante. É uma substância como o açúcar, a droga, mas também uma substância de outra ordem da qual nos tornamos adictos.  

Outra questão teórica é em relação a um nó que podemos seguir: Nome-do-pai, então falo. Em seu reverso, Nome-do-Pai sob zero (P0), não há nome-do-pai, falo sob zero (Φ0). Se não há pai, não há falo, não há significante no sentido fálico. As toxicomanias e outras questões clínicas colocam em questão esse enodamento tão claro. Não está claro se o fato de existir Nome-do-Pai faz com que seja possível o uso do falo. Essa questão não é somente importante para a clínica das toxicomanias, mas para outras clínicas também. Não como um fato de estrutura, mas se há um falo disponível ou incluído poderíamos discutir se há o Nome-do-Pai sem a função de um falo. Discussões clínico-teóricas que as toxicomanias permitem, como vocês dizem no trabalho, que J.-A. Miller propõe como um paradigma, porque questiona a relação do Nome-do-Pai com esta clínica.  

Freud propõe que a masturbação é o único hábito que cabe designar como adicção primordial. As outras adicções são substitutos da masturbação. Para S. Freud a masturbação tem dois componentes. Um mítico, ou melhor, lógico: uma atividade puramente autoerótica, por exemplo toques sem conotação sexual, mas satisfatórios no corpo. O sujeito ainda não sabe que isso é sexual. E um segundo tempo em que o tal autoerotismo é atrelado a uma fantasia. Neste caso sim, sexual. Entendemos o valor significante desse segundo tempo. Tal associação entre o autoerotismo e a fantasia produz um nó entre o significante e o corpo que vai aquém ou além da ação específica. A fantasia pode-se excitar pela palavra. Será necessária uma nova operação de substituição para que a masturbação abra a possibilidade de um sintoma ou de uma sublimação. Uma satisfação originária mítica, pré-sexual, um tipo de masturbação e, posteriormente, outra enodada ao sexual, ao sintoma, é o que diz Freud.  

A ideia de adicção como substituto da masturbação, como propõe Freud, mostra o caráter tóxico essencial do gozo mesmo. Lacan postula para as toxicomanias o que chamou de ruptura: “A droga é o que permite romper o casamento do corpo com o pequeno pipi”. Para entendê-lo, seguimos a sua definição de falo: “o falo é a conjunção desse parasita (o pipi) com a função da palavra”. Enodamento de um pedaço de corpo com a palavra, por isso vale para todos os sexos, não somente para os que têm pipi. Trata-se da operação que faz com que o órgão, como o pênis, responda ao significante. O falo é o que faz com que a operação responda ao significante. Para que o falo seja inscrito, diz Lacan, esse órgão de valor fálico deve responder à palavra. A inscrição do falo permite fazer do órgão e das partes do corpo, instrumentos. Parte do corpo pode ser utilizada como ferramenta para dirigir-se ao outro sexo. O órgão é um instrumento na sua conexão com o significante.  

A inscrição do falo não é garantia do uso do mesmo. No sentido de fazer uso. Podemos ter inscrição e não usá-lo como instrumento. Na perspectiva dos gozos fálicos consideramos ao menos duas modalidades. Há a que produz um impasse ao soldar o falo como inscrito, mas não disponível, como o caso do uso dos tóxicos. Mas o gozo fálico é suscetível também à via do sintoma, da sublimação e do amor.  

Em qualquer dessas perspectivas do gozo, o tóxico pode ter sua função, seja para assegurar o casamento com o falo, seja para possibilitar o uso da função fálica pelas vias do enlaçamento,  no encontro com o outro sexo. É o que Miller chama de colocar-se ao serviço sexual. Miller especifica que o próprio do gozo toxicômano é o que não passa pelo Outro. Não se trata somente da utilidade do tóxico, mas do que não passa pelo Outro. É necessário agregar ao gozo toxicômano não somente o que passa pelo Outro, mas o que passa pelo falo. Esse é o problema mesmo da sexualidade. É retroceder, pois isso é prévio ao problema sexual. Esse gozo pode levar à morte, ao não encontrar metáforas que o liguem à vida. Isso Miller chama de uma insubordinação ao serviço sexual.  

O caso Flora traz uma pergunta precisamente neste ponto: o gozo dessa mulher está a serviço sexual ou a serviço da insubordinação sexual? Temos um impacto sobre as questões sexuais, a violência sexual que para ela está mal-dita. Ela não pode nomeá-la. Esta é a marca de sua maldição frente ao sexo. Duas referências à novela familiar, típicas da histeria: uma mãe distraída sobre esta maldição sobre o sexo que recai sob a forma de violação e um pai impotente. Distração da mãe que deixa gozar e impotência do pai que não pode dizer. Se isso é assim, estamos na perspectiva de uma neurose que iria na direção do gozo fálico, mas não do gozo toxicômano em si.  

Há uma segunda consideração clínica quando ela começa a falar de sua história. A reprodução da violência da palavra. Se a princípio foi uma violência sexual a origem do trauma, essa violência mal-dita se transforma em violência da palavra. Em sua fantasia se ativa uma violência da palavra. A ponto de, ao contar ao outro essa violência, mesmo que dizendo mal, consegue em sua fantasia transmitir a violência de modo tal que faz-se responsável. Em suas palavras, ela termina matando o outro. Esse mecanismo é crucial. Ela confirma o valor que tem o enodamento do gozo com a palavra. Na fantasia seu próprio gozo se transmite pela palavra. O uso da substância tem a função de um gozo além da violência que lhe supõe. Aplacar esse gozo que é profundamente violento. No silêncio dos não ditos de suas palavras, ela supõe que pode matar. Há um resto que pode matar a ela mesma, ao menos em sua dimensão subjetiva.  

A substância vem aplacar este resto e a fantasia que se enoda é que a substância poderia, no lugar de matar o outro, dele cuidar. Ela pode cuidar dos outros com a substância. Não matar mais com suas palavras, mas cuidar aplacando esse resto de gozo que não alcança a ser bem-dito. Há um tratamento onde evidentemente ela percebe que a palavra poderia ter um uso diferente. Ela se interessa pelas palavras, pela linguagem. Quando a substância não funciona, ela se corta no corpo.  

O tratamento introduz uma dimensão temporal. Quer dizer, a possibilidade de um corte no bláblá das palavras que poderia ser ainda mais aditivo e que para ela não funciona. Ela vem dizer que quer outra coisa, que outra coisa deve ser possível para ela. O que vem não são palavras, mas um corte. Um corte temporal que lhe ordena temporalmente. Ela se ausenta e diz que precisa de um horário para si, o que é uma dimensão imaginária. Mas o que é mais importante é o horário, o corte. A primeira coisa que faz é situar-se no tempo. É a primeira vez que se dá conta de que as coisas necessitam tempo e é ela que põe o tempo nas coisas. É preciso historicizar-se, para que diga desse trauma mal-dito. A questão do feminino como possibilidade aparece quando se dá conta que não pode ser mãe de todos.  

Há uma questão se esse caso seguir: como fica o enodamento sintomático de ela cuidar do marido? Cada vez que ela tem que dizer algo que toca no ponto dele sair de casa há a fantasia de matá-lo, isso é intolerável para ela. Essa frase do marido é importante para ela: “não posso viver sem ti”. Leva-a imediatamente ao núcleo fantasmático que é de onde ela diz que pode matar o outro, como acha que matou seu ente próximo. Toda a vida ela fez cuidar. Se ela não faz uso da fantasia, o uso da substância toma essas vicissitudes. O corte para ela até então era a morte. 

Em relação ao marido demandante: importa menos que ele seja demandante ou não, o crucial é a função que cumpre. Quanto mais lhe demanda cuidado mais ativa o núcleo sintomático. O que não sei é se ela tem esse núcleo sintomático para consumir. Consumir é para ela sustentar o sintoma.  

 

Transcrição e tradução: Fernanda Turbat 
Revisão: Paula Lermen e Fernanda Volkerling


1. Artigo elaborado para a Conversação entre Núcleos, “Amor e seu avesso: novos laços”, realizada pelo ICPOL em 27 de novembro de 2021. O trabalho foi comentado por Ana Viganó, analista, membro da Nueva Escuela Lacaniana (NEL-México) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e sua transcrição, autorizada e revisada pela autora, acompanha o texto.

2. Texto escrito coletivamente por Fernanda Turbat (coordenadora), Beatrice do Valle, Brune Bonassi, Daniel Félix, Júlia Capeletti, Lilian Yamaguchi, Marina Schiochet, Rossano Bastos e Vicky Martins (relatora do caso clínico).  

3. MILLER, J-A. (1997). “A teoria do parceiro”, In: Os circuitos do desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, p. 172.

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