Entre o horror e o amor: feminicídio, feminino e psicanálise1
Núcleo de Psicanálise e Cultura2
Comentário: Ana Viganó
Fred Stapazzoli, sem título, 2023 [Matriz de monotipia]
um corpo morto não goza
o que se tenta matar é o feminino
o gozo outro
nesse outro corpo
que não o meu
nem o seu
nem o dele
nem ele
sabe
onde está esse corpo
esse gozo
outro3
A experiência humana é cindida entre aquilo que se impõe pela força e aquilo que é mediado pelas palavras. Ou seja, entre violência e fala. Já advertia Lacan que “nos confins onde a fala se demite começa o âmbito da violência”4. Com isso em mente o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Cultura tem se dedicado ao estudo dos traumatismos contemporâneos – isto é, os efeitos de fenômenos culturais e políticos de nossa época sobre os corpos dos sujeitos. Dentre eles, selecionamos para um estudo mais aprofundado – o feminicídio.
Lancemos uma hipótese: o feminicídio é um paradigma daquilo que poderíamos chamar de "femininocídio". Partiremos, então, do homicídio de uma mulher por sua condição de gênero – uma figura jurídica – para a violência contra o feminino da psicanálise. Referimo-nos aqui a uma experiência de gozo que atravessa todos os corpos, independente de sua posição sexuada, e que causa estranhamento e horror. Renata Riguini e Cristina Marcos propõem três perspectivas para pensar o feminicídio a partir da psicanálise: I – a pulsão de morte; II – a queda do Nome-do-pai e proliferação dos objetos do gozo; e III – o horror ao feminino. Afirmam as autoras que há sempre algo de novo e de velho na violência. A pulsão de morte é esse velho imutável; e o que muda com a época são as construções que fornecem os motivos da violência. A queda do patriarcado e o recrudescimento do capitalismo – hoje em sua versão neoliberal – são justamente o contexto que emoldura na atualidade a pulsão de morte. 5
Sobre o falocentrismo, Marie Helène Brousse questiona se, de fato, se trata de uma queda. As mulheres, ressalta ela, estão cada vez mais situadas do lado do falo. Não haveria assim um declínio, mas uma batalha em curso pela repartição do poder fálico de falar. A autora aponta também para o fato de que, em um sentido mais amplo, a queda do Pai – e, portanto, do discurso do mestre tradicional – abre as portas ao advento do discurso capitalista associado ao discurso, pretensamente neutro, da ciência. Conforme a autora, com isso, dá-se um fortalecimento daquilo que é da ordem dos procedimentos e dos algoritmos em detrimento do poder da palavra.6 A matematização dos laços, reduzindo tudo a mercadorias que se compram e vendem, anda de braços dados com o aumento da violência. Ambas estão inseridas, afinal, no contexto de uma vacilação da palavra.
Logo, a violência contra a mulher hoje é eminentemente conservadora, uma vez que busca restabelecer aquilo que caiu: a exclusividade do homem sobre o falo. E, para além disso, está associada intimamente a uma fragilização da ordem simbólica. Podemos pensar, assim, que onde a Lei falha, as leis também vacilam. O Brasil ocupa o quinto lugar num ranking mundial entre os países com maior índice de feminicídio. Entre os anos de 2003 e 2013, esse número cresceu 21%.7 Em 2020, em meio ao isolamento social, o Brasil contabilizou 1.350 casos de feminicídio, um a cada seis horas e meia.8 A maioria dos assassinos, 81,5%, eram companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Assim, a despeito de ter representado um avanço em termos jurídicos, a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio9 não trouxeram os resultados esperados no sentido de inibir estes crimes. Se pensarmos essa questão ampliando o debate ao incluir as pessoas LGBT, sabemos que os índices se complexificam, sendo o Brasil o primeiro no ranking mundial de violência contra este segmento.
Conforme o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a violência contra a mulher de 2013, o feminicídio é “a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte”10. Ou seja, o feminicídio, como figura jurídica, nos remete para a instância do poder soberano, que Foucault define justamente como um direito de fazer morrer.11 A soberania é um poder absoluto, isto é, literalmente, sem laço com a lei. Na psicanálise, essa posição está situada, na tábua da sexuação, no lado do masculino, onde há pressuposição da existência de ao-menos-um não castrado.12 Trata-se de uma exceção – justamente aquilo que caracteriza a soberania. Pode-se dizer, então, que se supõe a existência de um não submetido à lei e que, acima dela, pode escrevê-la conforme sua vontade, impondo-a pela força. O mito freudiano do pai primevo ilustra bem aquilo de que se trata.
O feminino, por sua vez, é indicado, na tábua, como aquele em que não há um que não seja castrado. A Lei se impõe a todos, sem haver uma exceção que funde um conjunto uno. Por isso a mulher é não-toda. Do lado feminino, portanto, está uma recusa do absoluto, do poder de vida e morte. No feminicídio, a mulher, que encarna esse infamiliar que habita em todos, é subjugada para que subsista, em cada homem, um resto da posição não castrada, um resto da soberania sobre o outro. O "femininocídio", assim, revela não só uma violência contra o feminino na mulher, mas, em última instância, uma recusa da limitação daquele gozo mortífero representado pelo pai da horda e fantasiado pelo homem.
Eric Laurent, citando Lacan, nos fala ainda da impotência masculina para abordar e amar uma mulher: “o que é mais complicado para um homem do que o corpo de uma mulher?”13. Frente a esta incapacidade, uma saída é tomá-la como objeto na fantasia. Porém, quando a mulher, de alguma forma, extrapola esta posição, pode surgir a violência enquanto aquilo que busca restituir-lhe o lugar de objeto.
A recusa ao feminino pode ser tamanha que uma das estratégias para lidar com ele é sua localização fora do corpo, confundindo-o como algo alheio e ameaçador, para em seguida atacá-lo e eliminá-lo no corpo do Outro. Eis o fundamento das segregações e violências mais generalizadas contra todos aqueles que fogem à lógica fálica ou que a subvertem. Aquele que busca se orientar unicamente pela lógica fálica não sabe fazer com esse gozo outro que o habita e o assombra, ou seja, com isso que escapa sob a capa da identificação. Pode-se compreender aí o fato de que alguns homens, após assassinarem suas parceiras, se suicidarem.
Contudo, pensar o gozo feminino – representado pelo inominável, pelo indizível – não é só discutir as violências que, novas ou velhas, permeiam essa relação de estranhamento desde tempos imemoriais. Trata-se, também, de refletir sobre as possibilidades presentes nas disparidades, naquilo que escapa e desorienta, sem que o único caminho possível seja o ato agressivo ou, pior, o aniquilamento. O gozo feminino que causa horror pelo que encarna – incertezas – também pode ser capaz de apontar caminhos “Outros” para a relação com as singularidades e com as diferenças e até mesmo com aquilo que não tem nome.
Vladimir Safatle, nesse sentido, indica que as experiências de poder são experiências de gozo. A emancipação – tanto subjetiva quanto política – passa por uma circulação do poder e do gozo. Ou seja, em vez da cristalização de uma autoridade ou da disputa por ela, trata-se de manter vazio o lugar do poder.14 Vislumbra-se, assim, o potencial transformador do gozo feminino. Conforme Rosa López, ele “desbarata qualquer ordem de representação”15 e, portanto, remete ao campo de uma alteridade radical. Logo, abre-se o caminho para algo que é da ordem do impossível e da contingência. Judith Miller indica que “se não compete à psicanálise alimentar nem a nostalgia dos ideais antigos nem a queixa sobre a dureza do mundo tal como é, compete-lhe colocar seus relógios em tempo”16. Acertando os nossos ponteiros, percebe-se um silêncio insistente e ensurdecedor. A construção de possibilidades outras, tanto no campo civilizacional quanto no subjetivo, só pode ser feita, rompendo esse silêncio, mediante a arte que nos caracteriza: a enunciação.
Comentário
Ana Viganó (NEL/AMP)
Quero dizer algo sobre o terceiro trabalho, por favor. Estamos entre os países que têm complexidades enormes com o tema dos feminicídios. Um dado que me fez pensar quando vocês traziam o dado de que uma mulher a cada 6 horas e meia é morta, ou algo assim, não me lembro exatamente. Para o México, agora, nesse semestre, tem diminuído um pouco a estatística, mas no ano passado, no início da pandemia, houve um pico feroz. Inclusive o governo tentou estimar os dados – que não eram certos porque tinha-se levantado no primeiro semestre de 2020 – e chegou-se a um pico de 10 mulheres por dia mortas no México. Agora é uma a cada 30 horas, menos de uma por dia, pelo o que se sabe até esse momento, no primeiro semestre de 2021. Bem, de todo modo, sempre temos problemas com os dados, que são, às vezes, censurados em nosso país.
No tema do feminicídio, há enormes arestas para considerar. A primeira, que já dissemos a propósito das toxicomanias, me parece, agora de outra perspectiva, é que a queda do Nome-do-Pai não garante uma queda do falo, um pouco ao contrário do que temos na toxicomania, em que podemos ter o Nome-do-Pai e não o falo (temos um grande trabalho para pensar em nossa época algo que havia sido tão importante para nós como o Nome-do-Pai e que não é que não siga sendo de uso para muitos sujeitos, mas há muitas outras questões). Aqui resulta que podemos não ter o Nome-do-Pai, mas o falo pode continuar funcionando. A ideia de que Pai e Falo não vão tão claramente de mãos dadas, é uma perspectiva a estudar.
Vocês nos situam a propósito de uma frase de Marie Hélène Brousse, em que diz que não haveria um declínio do falo, mas uma batalha pela divisão do poder fálico de falar. Há algumas décadas, os movimentos feministas partiam de reivindicações do empoderamento das mulheres sobre seus corpos. Brousse trabalha isso em vários textos, por exemplo no último livro Modos de gozar no feminino, do qual tomo algumas das considerações que compartilho aqui. As reivindicações de empoderamento sobre o próprio corpo, então, começaram com batalhas sobre a planificação familiar, sobre anticoncepcionais, sobre legalização do aborto (sabemos que esse é um tema ainda muito complicado em nossos países, de formas distintas). São temas que iam no sentido de apropriação do corpo das mulheres pelas próprias mulheres, depois de uma história de apropriação do corpo das mulheres pelos homens, pelo discurso masculino. Uma conquista ou reconquista dos próprios corpos, junto com o rechaço cada vez mais manifesto a ser única ou principalmente designada a lugar reprodutor, na procriação, com o destino consequente de esposas e mães.
O feminismo atual, como recorda Marie Hélène Brousse, em seu livro, é diferente desse feminismo de algumas décadas atrás. Tal é a evidência, por exemplo, que deixa o movimento MeToo. Trata-se, nesse movimento, de uma onda que: acentua a exigência de que o gozo sexual já não se define unicamente pelo desejo masculino; reclama uma especificidade da sexualidade das mulheres; denuncia, à torto e à direito, a posição de vítimas de algum atentado de tipo sexual (“Vítima” se tornou um significante mestre da época – Marie Hélène Brousse também trabalha muito com isso); e coloca em cena uma discussão complexa, por exemplo, sobre o consentimento.
Christiane Alberti, por sua vez, em um dos argumentos que acompanham o que será nossa Grande Conversação, diz que o eco viral que acompanha o movimento MeToo denota em suas consequências uma extensão do domínio do atentado a toda a gama de assédio físico, verbal e moral: não apenas o atentado e, claramente, o assassinato; o assédio físico, não só o estupro; o assédio, o abuso, inclusive verbal e moral. Demonstra que o feminismo, como discurso, tem mudado. Temos passado do feminismo político, diz Christiane, em sentido moderno, isto é, do feminismo de sujeitos na busca por direitos, para um feminismo de corpos. A guerra dos sexos tem passado para o espaço público, e a guerra política ao nível do íntimo com um tom de demonização dos homens. A explosão atual de denúncias se faz, principalmente, pelas redes, e os efeitos de ser nomeado pelo MeToo podem levar rapidamente ao cancelamento público, o que implica um monte de consequências. Não sei vocês, mas tenho muitíssimos casos dos dois lados – abusadas, abusadores, denunciados, denunciadores. Na clínica, isso tem se convertido em moeda corrente.
Sabemos também o enorme esforço atual por purificar a linguagem de todo sinal de dominação masculina. À queda do Pai se segue a declinação do viril. Do mesmo modo, os adolescentes e os jovens se perguntam hoje, com muito cuidado, sobre essas questões. Em especial, que quer dizer, por exemplo, um dos slogans do MeToo: “não é não”? E como entra essa afirmação no jogo de sedução? Que quer dizer “não é não”, como “a guerra é a guerra”?
Tivemos uma conversação, faz poucos dias, com Christiane Alberti, na NEL, a propósito da preparação para a Grande Conversação, e uma das colegas, do México, trazia o tema do feminicídio para a mesa, dentre tantos outros que foram abordados em uma conversação sobre o feminino que abre mil arestas. Christiane Alberti assinalou, brevemente, não desenvolveu, mas sim assinalou, a necessidade de distinguir ao menos duas questões. Uma quando os agressores são parceiros, isto é, mais da ordem, da dimensão do “La maté porque era mía” – há um filme francês que se chamava assim. Uma dimensão que não desconhece, sem dúvidas, o núcleo do rechaço ao feminino, mas o joga de um modo particular, pela via do parceiro. Não se trata apenas de que seja mulher, mas de que seja “minha mulher”. E o feminicídio como atentado ao Outro estrangeiro em seu gozo, aqueles casos em que se mata precisamente por seu ser mulher. Introduzo, assim, matizes que me parecem que estão na pesquisa que aqui se apresenta e que talvez poderíamos conversar um pouco mais. Bem, obrigada.
Transcrição: William Hamilton Leiria
Tradução: William Hamilton Leiria e María Luján Garzino
Revisão: Juliana Rego Silva
1. Artigo elaborado para a Conversação entre Núcleos, “Amor e seu avesso: novos laços”, realizada pelo ICPOL em 27 de novembro de 2021. O trabalho foi comentado por Ana Viganó, analista, membro da Nueva Escuela Lacaniana (NEL-México) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e sua transcrição, autorizada e revisada pela autora, acompanha o texto.
3. Trecho de poema de Mariana Vogt Michaelsen, integrante do Núcleo.
10. Citado em INSTITUTO, op. cit.
11. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010.