A teoria dos ciclos1

Laureci Nunes2


Foto: Gisele Gazzoni

Palavras-chave: Efeitos terapêuticos; Tratamentos breves; Investigação.

Ler os movimentos de uma análise como ciclos, seja ela de longa ou curta duração, é uma proposta que está colocada para nós do Campo Freudiano desde 2005. Ela foi forjada durante uma conversação clínica ocorrida em Barcelona.

As coordenadas iniciais dessa teoria, onde o significante “ciclo” surgiu como efeito après-coup, foram traçadas ao longo da discussão de tratamentos já encerrados, nos quais os encontros com o analista variavam entre um número de três e vinte. Esses encontros aconteciam em instituições da Espanha inspiradas pelo trabalho recém-iniciado no CPCT-Paris e, ao mesmo tempo, por um desejo de utilidade pública. Assim, os tratamentos podiam ser gratuitos ou não.

O contexto histórico em que a conversação aconteceu era o de ataque à psicanálise, principalmente na França. A medicina baseada em evidência relegava um lugar inferior à psicanálise sob a alegação de ser um tratamento demorado, oneroso e cujos resultados não podiam ser medidos pelos métodos de avaliação em voga, os quais, transformados em estatísticas, almejavam apresentar a graduação do sofrimento humano. Tratava-se de uma nova investida contra a psicanálise que também estava aliada ao incentivo do consumo de medicamentos. Uma batalha estava em curso e a Associação Mundial de Psicanálise pautou os debates no âmbito político e com a comunidade Psi, trazendo para o centro das nossas instituições o desafio de transmitir as consequências dos efeitos do encontro com um analista.

Sem que houvesse dúvida de que o resultado do tratamento psicanalítico pudesse ser avaliado, a questão posta era a de levar o caso e sua particularidade ao limite extremo de um processo de redução que pudesse fazer passar da percepção ao conceito, do fenômeno ao matema, situando o transmissível e universalizável de um caso, mas buscando, paradoxalmente, localizar o mais particular3. Isto é, sem se distanciar dos princípios de nossa prática, que é norteada pela política do sintoma e que insiste no resultado do caso a caso. Dito de outro modo, se é verdade que “a escuta analítica não é uma proposta de diálogo”, se “ela dá lugar a uma maneira inédita de ser ouvido, de ser questionado e ser orientado a partir da própria enunciação”4 como transmitir, localizar os seus “efeitos inegáveis”5?

Chamando a atenção para a necessidade de caracterizar o que definiria um ciclo e também o que distinguiria os efeitos terapêuticos rápidos dos resultados obtidos nas psicoterapias breves, Jacques-Alain Miller convocou os presentes a se desprenderem da ideia de psicanálise infinita, ao considerar que, em nossa concepção, tanto o tratamento quanto as sessões são termináveis. Sobre o fato de Freud chamar de fuga para a saúde6 quando os tratamentos terminavam pelos ganhos terapêuticos, JAM ressaltou a diferença de concepção de término de tratamento em Freud e em Lacan. Considerou que caberia a nós conceituar o que está em jogo com a nova proposta, pois não contamos com muitos aportes em Lacan nessa linha. Ainda assim, sugeriu que a retificação subjetiva7 no caso Dora, localizada por Lacan em “Direção do tratamento”, poderia agora ser lida como o encerramento do primeiro ciclo.

Inspirado pelos aportes do Seminário 23, que acabara de estabelecer, JAM apelava por uma ambição mais modesta dos analistas em relação ao seu fazer: “o ser do analista não é nada mais do que [...] um instrumento, algo que alguém o toma e se analisa com ele. Nossa arte é saber se prestar a isso, instrumentos humildes, sem [...] ideias de grandeza”8.

Nessa mesma direção, depois de mais de quinze anos dessa nova experiência do CPCT-Paris, Omaïra Mesenguer, atual diretora, constata que o “tratamento proposto, de dezesseis sessões, pode ser uma oportunidade para esclarecer, achar uma saída, reamarrar o que foi rompido, mas não deixa de ser um dispositivo modesto. Uma decisão esclarecida se impõe a cada vez: um tratamento curto pode ser conveniente em certos momentos, em outros não”9.

O que caracteriza um ciclo?

Do esforço inicial para estabelecê-lo, destaca-se:

a) que tenha sido ouvido o ponto de detenção do sujeito que aparece na demanda;

b) que a transferência possa ser localizada;

c) que se possa verificar uma perda ou redução de gozo articulada a uma interpretação ou ato analítico (ou seja, pode ser apenas uma pergunta que, depois, tenha tocado num ponto capaz de produzir uma abertura ou reamarração ao que estava rompido);

d) que o paciente considere que está findada a caminhada e que o praticante se convença de que pode parar ali (ou seja, que não se trata de resistência);

e) que a reabertura de um novo ciclo não está prescrita nem proscrita, já que os tratamentos breves não pressupõem que o paciente tenha esgotado todos os recursos da cura analítica (isto é, basta que ele não se veja obrigado a ir mais longe);

f) que há uma certa independência entre os ciclos;

g) que é importante que os centros de atendimentos também sejam centros de investigação.

Ressaltando a possibilidade de que sempre se pode abrir um novo ciclo, mas concordando, por outro lado, com a tese de que cada ciclo teria sua completude, JAM propõe pensar a análise como um processo tão terminável que se termina várias vezes. Ele orienta que um tratamento nas clínicas do Campo freudiano leve os sujeitos a concluir um ciclo. Desse debate, ele deduz três axiomas:

1º) Há sempre um primeiro ciclo, que pode ser breve.

2º) O ciclo é perfeitamente calculável.

3º) O ciclo é calculável après-coup.

Ao nível dos recursos de nossa doutrina , Hebe Tizio ponderou que “três sessões ou o número que seja, nos permitem contar um ciclo porque o contamos mais além do Édipo do último Lacan”10.

Isso posto, e pela especificidade de nosso trabalho, sem padrões exteriores que possam avaliar sua efetividade, fica evidente a importância que ele ocorra em clínicas ligadas a um projeto de investigação e formação dos praticantes

Como acolher o impossível de transmitir?

Das experiências atuais na comunidade da EBP, destacamos o que se realiza na Rede de Psicanálise Aplicada – Bahia. Nela, trata-se da psicanálise aplicada à prática em instituição, mas não sem a devida articulação com a psicanálise pura. Tal projeto articula a oferta da psicanálise à comunidade com a condição de que o tratamento seja acessível economicamente e eficaz em resultados terapêuticos. Nesse projeto, a amarração está concentrada na articulação entre formação e prática clínica, com espaços de discussão da prática e oferta de desenvolvimento da formação do praticante. Os supervisores e o mais-um do cartel têm uma função importante nesses processos, já que funcionam como suplência ao impossível de transmitir da prática clínica. Apoiam-se em cartéis, reuniões clínicas, conversação, supervisão11.

Para concluir... ou iniciar

O aceite em participar do cartel sobre Clínica de Atendimento se deve ao meu antigo interesse em ampliar as possibilidades de trabalho em nosso Instituto na direção da psicanálise aplicada. O interesse é que, além da oferta de tratamento psicanalítico aos que não podem ousar bater na porta de um consultório privado, também haja um lugar no qual nós e aqueles que estão iniciando, decididos pela prática da psicanálise, possamos construir um caminho buscando o rigor conceitual na ligação direta com a experiência clínica. Trata-se, então, de efetivar a prática deixando-se ser ensinado por ela e tirando consequências transmissíveis.

É assim que a teoria dos ciclos, citada no projeto da Bahia como norteadora, me saltou aos olhos e se tornou meu objeto de interesse no cartel. Logo após as leituras iniciais, localizei três casos de minha experiência clínica, tratamentos de curta duração, nos quais o termo ciclo serviu claramente como chave de leitura do processo. Esses casos foram escritos e levados a discussão no grupo. O primeiro elemento que me fez localizá-los foi a minha concordância com os pacientes de que aquelas quatro, três ou trinta sessões tinham sido suficientes para o que eles buscavam ao início do tratamento e, na relação com o que haviam alcançado, estavam satisfeitos. Se Lacan nos ensinou que o desejo do analista nos move a sempre propor o próximo encontro, nos casos em questão, diferentemente do habitual, o meu desejo não se dirigiu a querer demovê-los da decisão de parar. Não se tratava de resistência, eu também fiquei satisfeita com o trabalho realizado.

Proponho que, se estivermos decididos a fazer a aposta nessa direção, tal qual a inspiração para a fundação do ICPOL-SC, será importante seguirmos a nossa formação e investigação da nossa prática clínica, agora não somente nas nossas análises e supervisões, mas identificando outros pares, acompanhando a prática e a formação dos praticantes que estão ao nosso redor com o desejo decidido pela psicanálise, em seu tripé. Assim, penso eu, estaremos diretamente inseridos num processo no qual poderemos pôr em prática as propostas e hipóteses levantadas em nosso Campo e verificar a sua pertinência.

Se finalmente iniciarmos esse novo tempo da nossa empreitada, considero imprescindível manter em causa a localização da diferença entre psicanálise aplicada à terapêutica e psicoterapia breve. Não basta dizer que os efeitos terapêuticos de nossa prática vêm por acréscimo. Seremos convocados a localizá-los, situando-os à luz de nossos conceitos e na dignidade da ética de nosso Campo, que visa adaptar o sujeito ao seu bom modo de viver e não às demandas do Outro social.


1 Texto apresentado na conversação Clínica promovida pelo ICPOL-SC em 20 de setembro de 2022. Ele é fruto da pesquisa realizada no cartel Clínica de Atendimento.

2 Analista praticante, membro da EBP/AMP Seção Sul e associada ao ICPOL-SC.

3 GUÉGUEN, Pierres- Gilles. Efectos terapéuticos rápidos. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 14.

4 MESEGUER, Omaïra. Uma redução pode tornar-se uma interpretação. In: Revista Varidade, n2, março/2023. Disponível em: https://www.varidade.com.br/index.php/uma-reducao-pode-tornar-se-uma-interpretacao

5 Idem.

6 Documentos recentes trouxeram a público o encontro de Freud com o regente e compositor austríaco Gustav Mahler em 1910. O encontro de quatro horas, durante uma caminhada na cidade de Leiden, foi decisivo para o paciente sair de um quadro de depressão grave, reatar seu casamento e seguir em transferência com a psicanálise, através de leituras da obra de Freud. Mahler morreu no ano seguinte. Freud, por seu turno, admirou-se da inteligência do paciente e, quando perguntado se sabia dos efeitos sobre o paciente do encontro disse: “se é verdade o que chega aos meus ouvidos, eu fiz um bom trabalho”.

7 LACAN, J. Direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, pp. 591-652.

8 MILLER, J-A. Efectos terapéuticos rápidos. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 105.

9 MESEGUER, Omaïra. Op. cit.

10 TIZIO, Hebe: Efectos terapéuticos rápidos. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 106

11 Projeto Rede de Psicanálise Aplicada – Bahia, 2020. Instituto de Psicanálise da Bahia.

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