Uma experiência de Conversação: efeitos, derivas e invenções

Cinthia Busato1
Daniela Mayorca2


Foto: Tatiane Fuggi

Palavras-chave: Conversação; Pandemia; Psicanálise aplicada.

A proposta deste artigo é apresentar a experiência de um grupo de trabalho dentro do Projeto Acolhe UFSC3, pensado a partir do dispositivo da Conversação, conforme proposto por J. A. Miller. A questão que norteou o trabalho do grupo foi “A pandemia e seus efeitos: angústias, derivas e invenções”. Miller4 propõe a conversação como um dispositivo de trabalho orientado pelo Real que permite nos acercar de um impasse, de um enigma, algum opaco no sentido, apostando na produção em coletivo de uma invenção. Propusemos o uso deste dispositivo para nos aproximar dos efeitos traumáticos da pandemia sobre o cotidiano dos alunos participantes. O dispositivo aposta na temporalidade do inconsciente em que, seguido do instante de ver, é possível instaurar um tempo de abertura ao campo da palavra para a produção de significantes que nomeiem o vivido e materializem os testemunhos de uma época a partir das falas de cada um.

Sobretudo, trata-se de uma iniciativa, entre diferentes campos de trabalho com a psicanálise na cidade, de captar o contemporâneo pela escuta dos significantes que podem surgir e ser escutados em rede e por diferentes saberes. Por fim, uma iniciativa que deseja restituir a potência do testemunho no que ele porta de verdade radicalmente singular na contação da história social a contrapelo.

O acontecimento pandêmico e o Real

A pandemia de Covid-19, declarada oficialmente pela ONU em 11 de março de 2020, abateu-se sobre o planeta e todos tivemos nossas vidas transformadas por seus efeitos. O real da morte, antes recoberto pelo véu do que é apenas remotamente possível, se torna o ponto central da vida, nos ameaçando com sua iminência contínua. O terror do desconhecido agente ameaçador e as medidas incertas para sua contenção impuseram-se sobre a quase totalidade dos habitantes deste tempo. O isolamento e o distanciamento social, o medo como partícula no ar, entre um corpo e outro. Cenas inimagináveis de caminhões frigoríficos enfileirados, cheios de corpos sem lugar de descanso pelo mundo inteiro, hospitais lotados, profissionais da saúde blindados por camadas de EPI, cidades antes hiperpopulosas agora vazias. A cartografia do mundo se altera e no interior das casas se enclausura o fluxo que antes habitava as ruas. Universidades silenciosas, supermercados pós-apocalípticos. Corpos que se arriscavam pela sobrevivência sem pausa para uns: entregadores, profissionais de saúde, ubers, todos sendo empurrados a uma saída sem garantias.

Uma semana, um mês, três... não vai passar logo... mais seis meses? 1 ano e meio até a primeira vacina. E agora, sair de casa? Voltar às aulas. Voltar? Para onde? Como? É seguro? Que mundo era esse para qual voltávamos agora? Nem ele nem nós éramos os mesmos. Nunca mais seríamos. A pandemia se abateu como um acontecimento, um longo lampejo que instaurou um antes e um depois incontornável para cada um que a atravessou e foi atravessado por ela.

A política e seus efeitos de Real

Além do real do vírus, no Brasil, foi preciso atravessar também um enxame infernal de mentiras, de conluios contra a verdade no que ela portava de imprevisível e convocava à responsabilidade do poder. O desdém para com a fragilidade humana que nos abatia a todos naquele momento - acaso nos curaremos um dia das falas: gripezinha, histórico de atleta e, e daí, não sou coveiro? -. Além disso, os ataques aos únicos que mantinham viva a esperança de saída ou alívio daquele terror: artistas, cientistas, ambientalistas... Foi preciso sobreviver subjetivamente a uma profunda experiência de perda de nossos ideais de país, para manter vivos os ideais civilizatórios que ainda nos serviam como pilares. Os que sobreviveram a estes tempos, triunfaram duplamente sobre o vírus e sobre os inimigos da razão e das musas, como disse Sócrates:

Ei-lo, pois, já feito inimigo da razão e das musas; já não se serve do discurso para persuadir; alcança em tudo os seus fins pela violência e a selvageria, como um animal feroz, e vive no seio da ignorância e da grosseria, sem harmonia e sem graça (Platão, 2000).

Até hoje nos consultórios é possível escutar as ressonâncias deste acontecimento, planos de vida interrompidos e largados de lado, o medo de reviver o terror tamponando a coragem de desejar. Diz-se vagamente: “algo se perdeu...”, “não sou mais o mesmo”. O analista precisa, portanto, estar atento à escuta desses tempos, ainda que ela apareça como silêncio, resguardando o impossível de dizer, mas que diz-se. O desejo de voltar a nada saber sobre a morte, o gozo do esquecimento, a história sem nome, origem desde sempre dos sintomas, inibições e angústias humanas, opera atualmente sobre este acontecimento com plena força, aliado ao discurso dominante. O analista, portanto, tem que estar atento ao que, da singularidade de cada experiência, pode se construir como memória compartilhável, dando lugar ao vazio de sentido que o trauma recalcou. Disso é que se trata a aposta deste grupo de conversação.

A Conversação

O dispositivo da conversação, enquanto experiência coletiva, busca sustentar uma produção “no limite vacilante entre o já sabido e o não sabido”5. A conversação implica uma comunidade de experiência que tem como ponto comum a aposta de que todos “temos um saber que não podemos intercambiar”6, mas que pode ali causar, para cada um, a produção de uma invenção, uma narrativa possível, sobre o que aconteceu. Por isso é uma aposta na palavra que pode fazer laço, acolhendo os significantes, na direção contrária à sua cristalização ou seu sentido universal, buscando assim escutar o singular do dito no dizer.

Miller em seu texto Lo postanalitico, afirma que “a conversação implica uma comunidade de experiência”7. Uma prática valiosa pois não exige que se trate do tema até a exaustão ou sua coerente definição consensual, ela é assim, “mais bem, um estímulo”8. O objetivo da conversação é “estudar, recolher informações, pesquisar e historicizar”9 uma questão a fim de verificar uma situação ou acontecimento a partir da leitura dos dispositivos simbólicos que se encarregam dele, escutando-o a partir da fala dos participantes, compreendendo que é “a língua que lhe dá seu lugar”10. Na conversação trata-se de apontar precisamente para o opaco deste acontecimento, o que ainda não pode ser nomeado, o singular e amparar o silêncio que habita o cerne destas vivências.

Nossa aposta na conversação foi a de abrir o campo para uma inscrição simbólica possível ainda neste tempo tão recente após seu fim. Conformar um espaço aberto porém, com alguma borda, para permitir fazer laço a partir do reconhecimento de que as histórias ali compartilhadas, apesar de inefavelmente singulares, são também parte de uma história coletiva que nos atravessou a todos. Trata-se de apostar no poder da palavra em transformar a angústia causada pelo acontecimento em força de desejo e invenção singular.

Ainda que o sentido do dizer de cada um nunca possa ser completamente apreendido ou capturado por outro, a aposta da conversação, ao abarcar esta impossibilidade, pode permitir a criação de um saber no coletivo, provisório, que ampare a solidão de cada um quanto à vivência do acontecimento.

Efeito de coletivo

Marina Recalde, retomando Mbembe, diz que “os coletivos interpõem, então, um limite a essa brutalidade do Outro ou, ao menos, tentam fazê-lo, para impedir que esse corpo seja massacrado, humilhado, violentado e invisibilizado.”11 Esta é a importância destes dispositivos coletivos da palavra. Coletivo que, como a Escola:

Não pretende fazer desaparecer a solidão subjetiva, mas que pelo contrário se funda nela, a manifesta, a revela. (...) E participando desse coletivo de solidões singulares, amando no outro o insuportável de si mesmo, vai na direção contrária dos movimentos segregativos atuais e atualizados.12

A aposta na Conversação aqui, portanto, foi a de bordear o impossível de dizer do traumático da pandemia sustentando a produção de um acontecimento que teria a força de grafar este hífen antes-depois, inserindo uma temporalidade que fizesse força contrária ao efeito de repetição em que o trauma encapsula os sujeitos afetados. É, portanto, desde este lugar, que se torna possível nomear algo do vivido para cada sujeito, apostando na construção de um outro porvir para ela, a partir da palavra e do silêncio compartilhado.

A-bordar

Ao produzir um espaço para o acontecimento do testemunho e a invenção de uma narrativa que tateie uma gramática social para se falar do traumático, é possível ali nomear o evento como um acontecimento, produzir desta intensidade vivida, uma experiência. Assim, poder falar de como ele marcou um antes e um depois, produzindo a própria possibilidade de um depois, e de poder seguir em frente inventando, ainda, a própria vida.

Edson de Sousa afirma que a construção de um memorial tem como função “permitir esquecer”.13 Ao transformar a ferida viva em letra, algo pode se mortificar, deixar-se cair. Tal é o efeito do significante para Lacan, produzir um túmulo, gravar uma lápide, indicar um lugar, marcar um tempo, uma perda14. A instância da letra, como a instância do túmulo, permite criar borda ao traumático na forma de uma história que sujeito e social possam visitar e não mais serem assombrados por ele na vivência de um continuum sem pontuação.

Assim, por esta reinscrição, o traumático pode ser, em parte, nomeado e sepultado. Nomear o traumático, constituindo para ele uma palavra-memorial, permite, paradoxalmente, deixar de repeti-lo. Enquanto isso não acontece o efeito do traumático vaga, atormenta, impede viver, impondo-se pela continuidade do estado de perplexidade, mantendo presos os sujeitos na angústia de carregar na solidão do próprio corpo a dor e a memória do que foi perdido.

Trata-se, portanto, de uma ação eminentemente política, no mesmo registro do brilho do ato de Antígona, que segundo Lacan vai contra a ordem do novo poder e encena a insistência de um lugar digno para a morte.15 Um ato de furo para o surgimento do bem-dizer que faça força contrária à normalização da morte condenada, à banalidade do mal, como a das cenas que assistimos dos corpos sem lugar. Produzir neste espaço, assim, uma fagulha contra a obnubilação da memória causada pelo progresso que apressa violentamente para frente, sem tempo de memória, sem tempo de inventariar o que se perdeu.

Edson de Souza cita o poeta ucraniano Zahdan: “Pegue apenas o que é mais importante. Pegue as cartas. Pegue apenas o que puder carregar"16, e diz que este, ao escrever poemas, busca fazer registro de memória a fim de “provocar outro olhar sobre a dor dos outros. A função de testemunha como uma fresta, mesmo mínima, de reativar a força da vida, lá onde ela foi silenciada".17

A palavra e o Real

Há, portanto, o poder da palavra e, inoculado nela mesma, há o seu verso, o poder do espaço não nomeável, não aprisionado pelo sentido que faz pulsar a vida porque goza, lá onde nada se sabe dele. Lá onde a palavra diz uma bobagem, porque não se encerra no ‘querer dizer’. A palavra na sua intenção de nomear produz sempre um resto que, nesta fresta no dito, mais brilha como dizer. Lacan18 traz a precisa invenção significante de Joyce ao aproximar em seu poema Litter (lixo), de Letter (letra/carta). A invenção das palavras para nomear o gozo aponta sempre para isso que na “escrita poética remete ao despertar. Movimentar a língua. A língua que se cria ao falar”19, muito além do que ela significa.

Antônio Galvão (2013) aponta para as tentativas de transformar as experiências de exílio em relato, narrar as perdas e os destroços da errância e “como elas obstruem-se, precisamente nos limites de uma palavra que parece insuficiente para alcançar a experiência daquela realidade indizível, que não pode ser ‘verdade’, que não pode ter acontecido”[20]. Só é possível suportar a angústia falando: “O sujeito é vontade de dizer, de dizer ao Outro” nos lembra Miller21. Ao mesmo tempo, é somente mantendo aberto o seu vazio de sentido, sem desejo de tudo abordar e significar, que a palavra pode ter efeito efetivamente vivificante para quem fala. É neste litoral da palavra, “entre o gozo e o saber”22, que se localiza a aposta desta conversação.

“A escritura não é a impressão”

A inscrição de que se trata aqui é a da água que faz sulco por entre o gelo como em Lituraterra, na visão de Lacan sobre a planície siberiana. Um corte que aponte uma inscrição não como exposição da estampa positiva de um signo, mas como sulco causado pelo real. A marca que o traumático imprimiu não é, portanto, uma nomeação obliterada que se trata de resgatar. Tal marca tem a forma de um furo que apenas comporta a criação de significantes para bordejá-lo, ampará-lo em seu efeito de invenção, contornando os de angústia. "A escritura não é a impressão”, afirma Lacan em Lituraterra23. Bem como a experiência mítica de satisfação que também não produz um positivo, uma lembrança, mas precisamente um corte ravinhado na carne, produzindo um oco, deixando atrás de si uma ressonância que mobiliza o corpo na esperança de repeti-la. Inutilmente, pois, perdida desde sempre.

O acontecimento pandêmico teve um impacto de real que produziu um furo em todos nós, de forma singular. A pandemia inscreveu um antes de si, mas ainda não foi possível inscrever um depois dela. A tentativa de fazer disso um inventário, do que se perdeu, ou foi produzido é, não só recente, por não haver permitido um a posteriori que lhe desse espaço e estatuto de lembrança, mas possui também algo impossível pois portará sempre este quê de desrealização, de delírio, de sonho ou pesadelo por sua dimensão de Real.

Apostar na conversação é criar espaço para o testemunho dos sujeitos que atravessaram a pandemia e que portam em seu corpo as ravinhações que essa experiência produziu. A conversação permite escutar o testemunho desta marca, seus ditos, antevendo que o que há em seu fundo é na verdade um furo e não uma inscrição, assim ela permite abordar - ao fazer borda - este real que nos invadiu e angustiou, dando um contorno ao seu movimento imprevisto, reenviando os sujeitos, um a um, ao móvel da dinâmica singular do modo de gozar de cada um, reanimando o desejo.

Isto é apostar nos efeitos anti-mortíferos da palavra, o que só é possível resguardando o impossível de dizer. Com o silêncio e as palavras ali trocadas, é possível contornar o que toca a cada um, inscrevendo algo de coletivo que dá força e apazigua, suportando o insuportável para cada um, que ainda poderá mobilizar cada um a seguir inventando a vida após condescender com o fim daquela que tínhamos antes da pandemia. Se entramos nesta caverna por uma porta, não será pelo mesmo lugar que sairemos, será preciso que esta saída seja ainda inventada.

Instaurar um antes e um depois, não pretendendo sufocar este depois com sentidos emprestados ou apressados, assim a conversação busca tocar o Um da experiência para permitir que cada um possa encontrar ali espaço, uma folga na continuidade infernal das rotinas e no imperativo de retorno ao normal que se abateu sobre o mundo. A partir deste espaço, desta dilatação de tempo, permite entrar em contato com o furo que esta história produziu em cada corpo. Um minuto de silêncio, de vazio: este gesto de memória.

Se o princípio de prazer é o que leva à homeostase, é na dinâmica do gozo que há algo que perturba ainda esse equilíbrio e que não deve ser aprisionado pelo discurso, domesticado, nem sepultado pela inscrição, pois é ele mesmo a energia que faz a pulsão insistir. Portanto, ao analista não se trata de produzir com seus gestos um silêncio que deixe o sujeito à deriva da produção de sentido, do gozo do puro falar, mas um silêncio que faça corte aí mesmo onde o enlace da cadeia significante asfixia. Um corte que remeta este movimento à sua vivacidade.

A interpretação na Conversação: o Real em jogo

No fundo, do que se trata na “aposta da conversação é da anotação pascaliana que indica que quando se fala colocam-se coisas em jogo”, diz Laurent24. Sobre o tratamento que se dá às palavras na conversação, partimos do mesmo princípio que orienta a interpretação na clínica lacaniana pelo Real, desde o terceiro ensino de Lacan, disto depreendemos que ali:

A interpretação não é pedagógica; a interpretação não é didática; a interpretação não é sugestiva, e muito menos explicativa; a interpretação não é imperativa. A partir disso, pode-se dizer que a interpretação é do detalhe, e não do todo que é da ordem do Universal. Ela desfaz o todo e busca cernir o singular do dizer de cada um.25

Desde esta orientação pelo real, a interpretação torna-se mais pragmática, menos estruturalista e seus conceitos muito mais desidealizados, permitindo o trabalho com o real em jogo para cada sujeito, isto é, “com seu sinthoma, como aquilo pelo qual ele existe no mundo e nele se faz reconhecer”.26 É, portanto, “uma clínica que busca mais o que enlaça do que o sentido, já que não há outro acesso à realidade, para o falasser, que não passe pelo seu próprio real”.27

A experiência da Conversação no projeto Acolhe UFSC

Nossa aposta se materializa na formalização deste grupo como de caráter aberto, em que qualquer novo participante pudesse entrar a qualquer encontro. Esta abertura, como afirma Laurent, serve ao propósito de “furar a cristalização das identificações no grupo”28, mantendo-o amarrado à sua tarefa - de escuta - mais do que à pessoalidade do conjunto dos participantes em si.

O grupo começa no início do último semestre do projeto e acaba tendo somente a duração de um encontro, devido a impossibilidade de continuidade de uma das coordenadoras. Por este motivo, a análise do material produzido é bastante parcial pois, apesar de uma aposta decidida, fundamentada e que contou com a abertura sincera dos participantes em seus testemunhos, não foi possível verificar os efeitos deste encontro em um outro momento.

O que aparece neste primeiro encontro são relatos singulares de como foi este atravessamento pandêmico na vida de cada um, primeiro de entrada no isolamento e depois de saída dele, e o reencontro com a universidade presencial. Muitos foram os testemunhos da profundidade do impacto da interrupção das atividades fora de casa, da hiperconvivência familiar, ou a solidão. Além disso, o processo laborioso de ter de reencontrar caminhos e produzir novos sentidos para as pesquisas que estavam desenvolvendo diante dessas mudanças no percurso. Relatos de perdas de pessoas próximas e o luto atravessando seus projetos individuais. Os participantes, neste caso, eram todos alunos de pós-graduação. Uma participante disse: “eu queria participar deste grupo, para que ficasse de alguma forma registrado pela universidade o que eu vivi neste tempo”. Isto é o poder do testemunho, fazer do vivido, através da palavra compartilhada, uma experiência.

O impacto dos anti-discursos contra a ciência e a universidade pública foram apontados por muitos como fatores profundamente adoecedores, pois faziam questionar o próprio valor do que estavam produzindo. Para muitos foi preciso encontrar novos sentidos ao tomar sua pesquisa também como campo de batalha contra o horror, o esquecimento e o ódio para poder seguir o trabalho. Tanto a entrada em isolamento social foi vivida com angústia, como a saída dele também. Pois como voltar a habitar lugares fechados, com muitas pessoas, voltar a circular de ônibus, compartilhar salas de aulas, restaurantes, quando por mais de um ano estes espaços foram associados à doença e ao perigo real? Voltar a habitar esses espaços, a conviver dentro de um laço social múltiplo, sem as rígidas determinações de horário de salas de reunião online, fora da oferta de prazer e estímulo programado das redes sociais, tudo isso demandou um esforço ativo de reinvenção do modo de cada um estar no mundo. Se fomos pouco orientados quanto à entrada em isolamento, com confusas e tateantes instruções, fomos ainda menos instruídos quanto aos riscos e possibilidades na sua saída. A falta de uma linha que cortasse início e fim da experiência trouxe o risco de um contínuo alerta, bem como a desrealização da vivência coletiva e a consequente individualização do sofrimento. Por isso também o grupo tinha data de início e de fim, uma justa duração prevista: sete encontros.

A interrupção e o cálculo da aposta, das partidas justas, constituem uma espécie de asserção de certeza antecipada. A aposta da conversação é. Uma aposta sobre o corte: uma vez instalada a conversação, mediante o dom da palavra, é preciso saber que o corte terá lugar. O que se conseguiria? Precisamente que o quê se põe em jogo, o gozo do blá-blá-blá, ficará suspenso. Desta maneira, na sessão analítica fazemos do nada de gozo que se produz um finito, chegamos a fazer dele um produto; operamos através do traumatismo do final da sessão. É o que faz que esta prática da psicanálise, que é uma prática do corte, dê sentido ao mesmo tempo que nos leva a desconfiar da máquina de produzir sentido, não obstante a coloquemos em marcha e especulemos sobre ela.29

Laurent neste texto estabelece um direcionamento ao real: “o dom da palavra é um dom ali onde isso não fala”. Citando Judith Miller, diz que nos dispositivos de palavra fora da sessão analítica, somente a transferência permite não amortecer as consequências de seu dom, “produzindo um efeito de desajuste das identificações que dão lastro ao sujeito”. Entendendo a identificação por sua proximidade com o supereu. Portanto, na conformação da transferência através do dom da palavra, é preciso saber o manejo que se fará dela, reconhecendo os limites de tal operação neste contexto.

Em uma análise, o uso da transferência consiste em obter, em nome dela, a separação das identificações, (...) é preciso fazer dela (transferência) um uso preciso (...), o fim deve também estar definido. (...) Fazer da transferência um instrumento para remeter cada um a seus pequenos assuntos, ao que tem a fazer, como um objetivo para o grupo (...) permitindo reencontrar ‘sua coisa’.30

O corte, a duração imprevisível de cada encontro serviria para colocar “um limite à associação livre, finalizá-la bruscamente é também uma maneira de não aceitar princípios diretivos, de não aceitar funcionar ‘em nome de’”31. Fazemos isso para reintroduzir a dimensão de real do ato analítico, posicionando num lugar central a causalidade psíquica, eminentemente sexual, que tende sempre à foraclusão e à assepsia. A conversação segue com o princípio de testemunhar os efeitos deste corte e trabalhar no fio entre “a palavra castrada da sua causalidade e a reintrodução do seu lugar à sua função”32, na forma desta aposta.


REFERÊNCIAS:

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HORNE, B. C. (2014) Acontecimento. In: Scilicet: Um real para o século XXI. P. 36-38

KAUFMANNER, H. (2020) A pandemia e o infamiliar. In: Correio Express (04/abr). Disponível em: https://www.ebp.org.br/correio_express/2020/04/04/a-pandemia-e-o-infamiliar-1/

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1 Analista Praticante, membro da EBP/AMP Seção Sul e associada ao ICPOL-SC.

2 Analista Praticante. Psicóloga graduada pela UFSC. Mestre em Psicologia e Estudos Psicanalíticos pela UFMG.

3 O convite para participação do Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana no Projeto Acolhe UFSC partiu da Professora Dra. Ana Lúcia Marsillac, ao que nós do ICPOL aceitamos prontamente com muita satisfação e interesse, tanto por nos identificarmos com o projeto, por sua ação de escuta e acolhimento da comunidade universitária, tão afetada pelos efeitos da pandemia, quanto pela possibilidade de recolher aí os dizeres da época e, junto dos outros parceiros, tomar esse material para irmos construindo algum saber que nos ajude a ler e manejar a clínica nestes tempos.

4 MILLER, J-A. Lo Postanalítico. In: Conferencias porteñas, Tomo III Desde Lacan. 1a ed.- Buenos Aires: Paidós, 2010. p. 87-92

5 Idem, p.88.

6 Idem, p.89.

7 Idem, p.87.

8 Ibidem.

9 LAURENT, E. A interpretação: da escuta ao escrito. In: Jornadas da Seção Nordeste, 2018. Disponível em: https://ebp.org.br/nordeste/jornadas/2022/2022/08/16/a-interpretacao-da-escuta-ao-escrito/

10 Ibidem.

11 TORRES, M. M. Ode ao coletivo ou como construir Jornadas na pandemia – Ressonâncias da XXVII Jornadas – Exílios. Seção Rio de Janeiro. 2021. Disponível em: https://ebp.org.br/rj/2021/02/26/ode-ao-coletivo-ou-como-construir-jornadas-na-pandemia/

12 Ibidem.

13 SOUSA, E. L. A. de. Utopia, memória, trauma: escrever o impossível. Seminário de abertura do segundo semestre da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. 2022.

14 LACAN, J. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. Original publicado em 1959-60.

15 Ibidem.

16 SOUSA, E. L. A. de. Psicanálise e Utopia: furos no futuro. Porto Alegre: Artes&Ecos, 2022.

17 Ibidem.

18 LACAN, J. Lituraterra. In: Outros escritos. V. Ribeiro, Trad. Zahar, 2003, pp. 15-25. Trabalho original publicado em 1971.

19 MILLER, J. A. Matemas 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 1996, p. 61.

20 GALVÃO, A. Exílio, ficção e história em contos de Caio Fernando Abreu. In: Anais do SILEL. Volume 3, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2013. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/wp-content/uploads/2014/04/silel2013_1459.pdf

21 MILLER, J. A. Un Effort de Poésie. Orientação Lacaniana, 2002/2003.

22 Ibidem.

23 Ver nota nº 16.

24 Ver nota nº 4.

25 SIQUEIRA, E. (2022) Existência e escrita do Um: novos arranjos contra o imperialismo do Universal. In: Boletim Litorâneo 9. Seção Nordeste. In: https://ebp.org.br/nordeste/2023/04/06/editorial-boletim-litoraneo-no10/

26 Ibidem.

27 Ibidem.

28 Ver nota nº 4.

29 Laurent, 2018. p.44.

30 Ibidem.

31 Ibidem.

32 Ibidem.

 

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