Sobre o termo “casuística”
Jussara Jovita Souza da Rosa1
Foto: Fernanda Volkerling
Palavras-chave: Casuística; Psicanálise Pura; Psicanálise Aplicada.
Escrevo a partir do que nos convoca Romildo do Rêgo Barros2 em sua Conferência Formação do analista e casuística: “não confiar demais na palavra casuística”3; pensar criticamente o seu uso, dada a sua relação com o universal, já que “a prática da psicanálise se dá na passagem do particular ao singular.”4
De acordo com Jorge Forbes, “A psicanálise não trabalha com casuística. Freud revolucionou o estudo da psicose com um só caso – o caso Schreber – que não foi caso, foi um livro de alguém que ele, Freud, nunca viu” 5
Isso talvez precise ser afirmado, pois a expressão “casuística da psicanálise” não nos é infamiliar. A título de exemplo trago aqui três fragmentos. Neste escrito de Fernanda Otoni Brisset para “Ação dobradiça em revista”, em 2015:
Em 20 anos da Escola Brasileira de Psicanálise, testemunhamos o vivo de sua experiência desde lá onde um psicanalista está, ou seja: no único dos relatos de passe; na confidência entre dois parceiros no particular da clínica; quando um analista toma sua parte de responsabilidade nas instituições cuja casuística e sua posição nos projetos clínicos permitem verificá-la; ou infiltrada como passageira clandestina nos tecidos discursivos da cidade.6
Suzana Faleiro Barroso, em sua valiosa pesquisa acerca da psicose na infância, referindo-se ao Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, nos escreve:
Os problemas na constituição da superfície corporal constituem o motivo maior da colocação em série nesse seminário de dois casos muito conhecidos na casuística da psicanálise com criança: Robert analisado por Rosine Lefort, e Dick analisado por Melanie Klein.7
Adela Fryd, em seu livro Los niños amos, na nota ao leitor, assinala: “Estamos advertidos, entretanto, de que toda casuística é, em última instância, uma construção ficcional.”8. Mais adiante propõe: “[...] ao enfocarmos criança amo apelamos a uma casuística que não podemos classificar de diagnóstica, mas cuja presença devemos justificar e explicar para poder pensar que resposta tem a psicanálise [...]”. A autora, referindo-se ao lugar da mãe na relação com a criança, destaca que Freud “[...] já tomava esta casuística quando via o recalcitrante elemento da pulsão de morte na reação terapêutica negativa[...]”[9].
A discussão do termo “casuística” se insere no âmbito do que Lacan promove com o seu ensino e com a fundação de sua Escola. No “Ato de fundação” ele cria três seções: a seção de psicanálise pura, a seção de psicanálise aplicada e a seção de recenseamento do campo freudiano. A seção de psicanálise pura diz respeito à:
[...] práxis e doutrina da psicanálise propriamente dita, que não é nada além – o que será estabelecido no devido lugar – da psicanálise didática [...] Sua razão de ser fundamenta-se naquilo que não há por que ocultar: na necessidade que resulta das exigências profissionais, toda vez que elas levam o analisante em formação a assumir uma responsabilidade, por menos analítica que seja.[10]
A Seção de psicanálise aplicada, que conta com as seguintes subseções: Doutrina do tratamento e de suas variações; Casuística; Informação psiquiátrica e prospecção médica”. [11]
E, por último, temos a Seção de recenseamento do campo freudiano, que visa assegurar:
[...] o levantamento e a censura crítica de tudo o que é oferecido nesse campo pelas publicações que se pretendem oferecidas por ele. Ela [a Seção] fará a atualização dos princípios dos quais a práxis analítica deve receber, na ciência, seu estatuto. Um estatuto que, por mais singular que afinal seja, preciso reconhecê-lo, nunca seria o de uma experiência inefável.12
De acordo com Miller, em “El banquete de los analistas”, nessa terceira seção:
[...] se confronta o elaborado na Escola com o que se elabora em outra parte. E isto dá lugar a uma disputa classificada e no possível demonstrativa a respeito dos outros ensinos que têm lugar no campo freudiano, que inclui a todos aqueles que se referem ou se consideram herdeiros do descobrimento de Freud. 13
De acordo com o dicionário Houaiss, o termo “casuística” é utilizado na ética, na religião, na medicina e no jurídico e em sua primeira definição encontramos:
[...] exame minucioso de casos particulares e cotidianos em que se apresentam dilemas morais nascidos da contraposição entre regras e leis universais prescritas por doutrinas filosóficas e religiosas, e inúmeras circunstâncias concretas que cercam a aplicação prática destes princípios [...].14
Da leitura da definição do verbete destaca-se: “casos particulares e cotidianos”; os termos “dilema” e “contraposição”; e o conflito entre “leis universais prescritas” e as “inúmeras circunstâncias concretas que cercam a aplicação prática destes princípios”. Embora o termo de alguma forma denuncie o fracasso do universal, do ponto de vista da lógica seu uso não recobre o que sustenta a psicanálise, pois o termo “casuística” se detém no particular, no que está para alguns e escapa ao universal.
Na prática da psicanálise vamos do particular ao singular, este é um ponto importante a ser demarcado e que nos convoca a pensar a formação do analista. A sua formação se dá na Escola. Um analista se forma por si mesmo e por mais alguns outros e desde Freud se dá a partir do tripé: análise pessoal, estudo teórico e supervisão. “No ensino, certamente, deve se desmentir a ilusão da solidão do psicanalista”.15
Bernardino Horne em seu texto “O que é um CPCT?” ressalta: “Sem dúvida, há um real em jogo na formação dos analistas. A escola tenta cernir esse real no núcleo mais íntimo de sua estrutura, trabalhando os passes que os Analistas da Escola (AEs) oferecem à comunidade de membros da Escola.”16. Isso concerne à psicanálise pura, em intensão, mas não sem o enlaçamento com a psicanálise aplicada, em extensão:
E, na topologia da Escola, do laço de intensão, já que é no próprio horizonte do laço de extensão que se ajusta o nó de intensão, como afirmado por Lacan em sua ‘Proposição’. Os Institutos por sua vez nascem do braço da extensão da Escola, percorrem-no e, em face do real em jogo que se faz presente também no ensino, orientar-se até o centro desse real, isto é, ao anel da intensão que completa a topologia da Escola.17
Horne, nesta discussão, destaca o que Laurent em seu discurso de candidatura à função de delegado geral 2006-2008 considera importante para se pensar a tensão que existe entre a psicanálise pura e a psicanálise aplicada. De acordo com Laurent:
Hoje em dia, o essencial é perceber que todo problema concernente às Escolas deve ser concebido como um modo de enlaçamento de três consistências: a Escola, o Instituto e os centros de psicanálise aplicada na variedade de suas formas.18
O enlaçamento das mencionadas consistências se dá pelos fios da psicanálise em intensão e o da psicanálise em extensão. Relembrando Lacan, tratando do estatuto da psicanálise no “Ato de fundação”: “[...] por mais singular que seja, [esse estatuto] nunca seria o de uma experiência inefável.”19, ou seja, nunca seria o de uma experiência que não possa ser descrita. Isso se daria “Se não houvesse matema da psicanálise [...]. Os analistas nunca teriam chance de se entender. Formariam uma comunidade iniciática, fechada sobre um segredo.”20
O termo “casuística” não se coaduna com a noção de formação do analista, pois essa se dá na Escola, e está na visada da psicanálise pura. Entretanto, é importante considerar que não é sem o enlaçamento das três consistências citadas por Laurent. Quando no tripé indicamos o estudo teórico como um dos seus sustentáculos não é sem o que se desenvolve no âmbito da psicanálise aplicada à terapêutica, que na experiência dos institutos transcorre nos cursos de psicanálise, núcleos de pesquisa clínica e investigação, ateliês de leitura entre outras experiências muitas vezes enlaçadas com cartéis inscritos na Escola. Acerca desse enlaçamento, Miller nos faz uma advertência importante: a “[...] aplicação da psicanálise propriamente dita e seu uso com fins terapêuticos[...]” pode nos obrigar “[...] eventualmente a atenuar seu caráter radical.”21
Para finalizar esta pesquisa, destaco o que Anna Aromi em seu texto A queda do caso nos escreve: “Caso é o que cai, o que cai de onde? O que cai da clínica, embora possa não parecer, é simples: são caixas para classificar o que se diz. Então, o que cai das caixas? Isso é o caso”22. Nossa prática se orienta a partir do estudo da neurose obsessiva, neurose histérica, psicose, perversão e do que a época nos demanda. Falamos na clínica transestrutural, mas isso não invalida as classes. A questão fundamental que se coloca é a de podermos transmitir o que se pratica no âmbito da psicanálise aplicada à terapêutica que envolve a clínica em geral e sobretudo a clínica com crianças, pois essa, já de partida, não visa a formação de um analista.
1 Analista Praticante, membro da EBP/AMP Seção Sul e associada ao ICPOL-SC.
2 BARROS, Romildo Rêgo. “Conferência realizada para a aula inaugural do Curso de Psicanálise de Orientação Lacaniana do ICPOL-SC”, realizada em 05/03/2022.
3 Ibidem
4 Ibidem
5 FORBES, Jorge. “Aula inaugural do corpo de formação em psicanálise 2009, do IPLA. ” 09/02/2009 Disponível em: http://jorgeforbes.com.br/provocacoes-psicanaliticas-2/
Acesso em: 01/09/23
6 OTONI-BRISSET, Fernanda. “Para bem dizer a ação lacaniana, na EBP. ” Disponível em: https://ebp.org.br/acaodobradica/
Acesso em:28/08/23
7 BARROSO, Suzana Faleiro. “As psicoses na infância: o corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido”. Belo Horizonte: Scriptum, 2014. p. 177
8 FRYD, Adela. “Los niños amos”. Buenos Aires: Grama ediciones, 2018. p. 13.
9 Ibidem, p. 56
10 LACAN, Jacques. Ato de fundação. In: “Outros escritos”. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p.236
11 Ibidem, p. 237
12 Ibidem, p 237 e 238
13 MILLER, Jacques-Alain. “El banquete de los analistas.” Buenos Aires: Paidós, 2018. p.270
14 GRANDE DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v6-1/html/index.php#4
Acesso em: 28/08/23
15 MILLER, Jacques- Alain. “1,2.3,4” (Tomo I). Buenos Aires: Paidós, 2021. p. 7
16 HORNE, Bernardino. O que é um CPCT?. In: “Correio”, Revista de Escola Brasileira de Psicanálise, n. 60, 2008, p. 53
17 Ibidem, p. 53 e 54
18 LAURENT, Eric. “A sociedade do sintoma”. Rio de janeiro: Contracapa, 2007. p. 206
19 LACAN, Jacques. Op. Cit., p. 238
20 MILLER, Jacques- Alain. “Matemas I.” Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. p. 171
21 MILLER, Jacques- Alain. “El banquete de los analistas”, Op. Cit., p.270.
22 AROMI, Anna. A queda do caso. In: “Correio”, Revista de Escola Brasileira de Psicanálise, n.79, 2016, p. 65