Samurai X e Musashi: o amor em Além do princípio de prazer 

Cleyton Andrade1  


Fred Stapazzoli, sem título, 2022. [Óleo sobre tela, 40x40cm]  

Palavras-chave: Eros; Morte; Pulsão de morte. 

No Período das grandes invasões portuguesas e espanholas nas Américas, da procura da rota para as índias, já havia um contato entre portugueses e japoneses. Entre 1468 e 1603, o Japão vivia um período de grande turbulência interna. Um período de embates e desarticulação política entre as grandes famílias latifundiárias lideradas pelos Daimios, que atendiam cada vez menos ao poderio do Shogun, muito menos ao Imperador. Este já reduzido à condição de figura de valor mais imaginário do que simbólico. Os samurais eram os representantes e servidores militares submetidos aos Daimios, que estavam constantemente em confronto neste período. Ao mesmo tempo já havia uma percepção, mesmo que tênue, da ameaça vinda do expansionismo europeu, principalmente português (os bárbaros do sul, uma vez que vinham pelos mares ao sul do Japão). De lá chegavam embarcações com mercadores, missionários jesuítas, que eram vistos cada vez mais com alguma desconfiança. A ameaça vai ganhando forma a ponto de criarem limitações de desembarque, e em casos mais tensos, inclusive, de crucificação como punição a estes estrangeiros. Um Japão em guerra, que já se mostrava atento à possibilidade de invasão portuguesa, começava a se fechar na tentativa de impedir sua transformação numa nova América. 

Vale ressaltar que comerciantes/mercadores, principal ponto de contato com os europeus, ocupavam um dos estratos mais baixos da organização social japonesa até, aproximadamente, o século XVIII e XIX, quando começaram a enriquecer. Destaco isso apenas para indicar que a pressão mercantil foi uma das principais forças a atuarem para aquilo que convencionou chamar de “abertura do Japão”, que coincide com a virada para o século XX. 

Um dos mais poderosos Daimios, Ieyasu Tokugawa, assume o poder na Batalha de Sekigahara, em 1600. Ponto de virada histórica que transfere a capital para Edo, atual Tóquio, introduz uma ditadura militar rigorosa do Shogunato Tokugawa, que durará aproximadamente duzentos e cinquenta anos e é conhecido como Período Edo, ou Tokugawa. É também quando o Japão se fechou para o ocidente.  

É nessa batalha de Sekigahara que Eiji Yoshikawa introduz um personagem histórico, embora lendário e folclórico, quase um mito popular para o imaginário japonês e, inclusive, ocidental: Musashi. Yoshikawa inicia seu romance com um jovem adolescente, Takezo, desfalecido entre montanhas de corpos sem vida, no exército derrotado em Sekigahara. Esse jovem, que teria nascido em 1584 e morrido em 1645, é aquele que receberá o nome Musashi. Conhecido até por uma fatia do empresariado e empreendedores que fizeram de O livro dos cinco anéis uma espécie de obra de referência para os negócios, numa das apropriações inflacionadas pelo ocidente liberal sobre obras orientais, tal como em A arte da guerra, de Sun Tzu. 

Embora conhecido como mais mortal e famoso samurai japonês, Miyamoto Musashi foi ronin durante quase toda a vida. Ronin é um homem que age por conta própria, fiel como uma onda. Ou seja, não é um exemplo de fidelidade, dada a sua liberdade de andarilho errante, sem um senhor. Não é um vassalo, não é um súdito de um Daimio. Neste caso, e somente dentro dessa disciplina de uma servidão voluntária é que podemos chamar de samurai. Curiosamente, só no final da vida Musashi se torna samurai. 

Em suma, temos um ronin, que sobreviveu a uma batalha onde a morte foi soberana; se tornou um famoso espadachim pela sua letalidade; no entanto, abandonou a espada de corte por uma de madeira, para depois fazer da própria espada muito mais um instrumento de caminho espiritual, digamos, através do zen, do que de agente da morte. Aquilo que conduzia à morte se torna caminho para vida. Um espadachim que faz da espada um significante novo. Parte da técnica que leva à morte de modo inexorável, para a intervenção do laço social, da preservação e valorização da vida como algo novo a se fazer com a espada e com as marcas que ela sulcou no corpo, em forma de escrita.  

Encontro turbulento e ao mesmo tempo entusiasta entre linguagem e real, entre realidade e folclore ou mito. Algo que diz respeito ao tratamento que o mito dá ao inapreensível da linguagem, à impossibilidade de formalização que chamamos de real. Literatura de um personagem histórico é a expressão refletida com todas as distorções e opacidades da própria estética do saber psicanalítico. Desde Freud aprendemos que, para falar de Dora, Hans, Aimèe ou qualquer outro caso, há uma estética necessária, uma dimensão literária. 

Miyamoto Musashi surge no imaginário japonês recontado por Yoshikawa quase emulando Dom Quixote. É um sobrevivente num mundo que havia perecido. De cavaleiro andante a andarilho de um Japão da Era Tokugawa de Shogunato forte. A entrada dele coincide com o início de um período cujo fim só ocorrerá dois séculos e meio depois, com novos movimentos de tensão política, revoltas e rebeliões que procuravam combater essa ditatura militar e restituir o poder do imperador. Essa nova ruptura dará origem a outro período conhecido com Era Meiji, a última antes do que seria o Japão moderno. É nessa nova ruptura que a ficção coloca em cena um novo personagem que transita no limite entre a vida e a morte, sendo a rigor um agente da morte. Dessa vez não mais um personagem histórico que se encontra com a literatura. Agora me refiro a uma produção da cultura pop, dos animes e mangás.  

Refiro-me a Rurouni Kenshin, ou, como alguns conheceram no Brasil como Samurai X. Esse nosso novo herói trágico do limite das relações entre a vida e a morte guarda importantes referências ao seu antecessor histórico e mítico, Musashi.  Dois adolescentes sobreviventes de batalhas históricas. O primeiro, derrotado, vê o adversário iniciar um domínio de dois séculos e meio. O segundo, que lutou contra o Shogunato Tokugawa para o advento da Era Meiji, estava do lado vitorioso. Contudo, pagou um alto preço que lhe conferiu um nome próprio, um nome de gozo: Battousai, ou seja, o retalhador. Sua função nessa resistência para o retorno do imperador era a de Hitorikiri Battousai (assassino retalhador). Ele executa sua função de agente da morte com extrema eficácia, a ponto de sua função fazer-se nome próprio. 

Tanto ele quanto Musashi não foram samurais, tanto um quanto outro foi um ronin. Rurouni Kenshin, do título, seria na verdade Ronin Kenshin, ou o andarilho Kenshin. Este último nome, também rebatizado Kenshin, é a junção de dois ideogramas: Coração/espírito, no sentido de caminho ou zeitgeist, e o de espada. Seria algo como o espírito da espada. 

Alguns encontros foram fundamentais no caminho de nosso jovem Himura Kenshin. Destacarei dois. Numa de suas missões de execução, como retalhador, elimina sozinho, com a facilidade habitual, alguns oponentes samurais. Com exceção de um, que, já duramente golpeado a ponto de ver a morte bem de perto, ainda resiste com dificuldade. A cada novo golpe desferido, potencialmente fatal, esse homem ainda insiste em se levantar cambaleante dizendo algo como: “Eu não posso morrer!”. A sequência é marcada tanto pela inverosimilhança quanto pelo lirismo. Em uma destas tentativas, consegue desferir um golpe que atinge a face do intocável Battousai. Essa será a primeira marca de uma cicatriz que acompanhará Kenshin. A marca de um desejo de viver diante da morte já anunciada, que incidirá como uma escrita ainda ilegível para o herói. Uma cicatriz feita por um homem que, movido pelo amor endereçado à sua jovem noiva, insistia em ficar vivo por ela. 

O segundo encontro é com uma jovem misteriosa que cruza seu caminho. Uma bela mulher que logo se mostra dedicada na mesma proporção que não deixa entrever seu passado e sua história. Circunstâncias da rebelião forçam Kenshin a se esconder numa fazenda, fazendo-se passar por um agricultor. Essa mulher lhe cairia muito bem para esse disfarce. O enamoramento entre ambos se fez inevitável. Contudo, algum tempo depois, esse passado antes obscuro, se esclarece: ela era a noiva do samurai que insistia em não morrer por amor. Ela se aproximara de Kenshin com intenções de vingança, aliada àqueles que queriam eliminar o retalhador. A ideia era que ela lhes fornecesse os pontos fracos do imbatível oponente. O que ninguém, salvo nós mesmos, os espectadores, esperavam, era que ela se apaixonasse de fato. O plano, que ela mesma desconhecia, era que suas informações eram irrelevantes, uma vez que a intenção do grupo era que ela se tornaria o ponto fraco de Kenshin, através do enamoramento.  

Partindo para o confronto de Kenshin com o líder deste plano, ele se dá após inúmeras lutas em que nosso herói já está bastante desgastado e com os olhos seriamente comprometidos. Neste momento em que sua morte parecia certa, num impulso desfere um golpe decisivo no oponente. Entretanto, a jovem mulher, para salvá-lo, se lança entre ambos. O golpe cujo destinatário era o oponente, atinge-a, causando-lhe a morte. Nos braços de Kenshin, com um punhal, ela faz docemente a escrita de seu amor sob a forma de um corte. Este cruza a cicatriz feita por aquele que fora seu antigo noivo. Agora, aquele homem que era a expressão da morte que assombrava a todos, portava na própria face, escrita em dois tempos de um amor vizinho da morte. Um amor que luta contra a morte, e ao mesmo tempo o amor que é capaz de se sacrificar pelo outro, não como forma de ceder à própria morte, mas como um modo de tornar o amor uma marca decisiva de não recuo frente à morte. (Essa cicatriz/escrita, em forma de X, fez esse mangá e anime ser conhecido no Brasil, como Samurai X). 

É disso que fala Freud em Além do Princípio de Prazer. Como operar com os limites? Como operar com esse “x”, essa incógnita que é cifra de uma indeterminação característica de um enfrentamento entre ciência e linguagem, entre ciência e os limites do saber? A quarta parte do texto de Freud de 1920 tenta dar conta disso. A ciência não acolhe o mito, nem se mostra disposta a lhe fazer concessões. No entanto, Freud não se furta a promover um certo amálgama entre ambos. Em Além do Princípio de Prazer a gramática é biológica, mas a lógica é do mito e a estética é literária. O regime estético constrói as marcações de um circuito especulativo que não se interrompe mesmo com descrições da embriologia. Ao contrário, é esta que atende à uma exigência irrevogável ao pensamento do mais arcaico. Uma história do mais antigo e primitivo força sua entrada nas células germinativas. 

O discurso científico, se não depõe suas armas na seção cinco do texto, ao menos abre alas e dá passagem clara ao mito. Freud introduz o inusitado anseio de Eros. Como, em meio a células, embriologia, a uma busca de um arcaísmo biológico, Freud surgira com o anseio de Eros se este já não estivesse no fundamento de sua argumentação?  

A pulsão sexual, até então antagonista das pulsões de autoconservação e do eu, o elemento perturbador por excelência da unidade do eu e da conservação da vida, agora se apresenta de outra forma. O fator perturbador da vida e do eu, agora, tal como a espada de Musashi, é caminho para a vida. O anseio de Eros é a condição absolutamente necessária para tornar compreensível a racionalidade em jogo num além do princípio de prazer. É a condição de possibilidade para a concepção de uma sexualidade ao lado, e pela vida. O anseio de Eros é o anseio da vida frente a morte. É o nome daquilo que incide sobre a pulsão sexual para dar um tratamento à pulsão de morte. O anseio de Eros é o que produz a escrita impactante e ilegível, na face de Kenshin, sob a forma de X, de uma incógnita que Freud insere na equação. 

O além do princípio de prazer não está depois dele. É anterior. Fundamentalmente arcaico, a ponto de precisar do recurso do mito para acessar isso que ainda está desconectado. Afinal é disso que se trata... de como conectar o que se encontra desconectado, fazer laço a partir do traço disruptivo. É a função de Eros. O princípio mais elementar é o princípio de Nirvana, e a pulsão não é outra senão a pulsão de morte. Se fosse só isso, a história acabaria aí. Talvez Musashi estivesse morto em Sekigahara ou não teria encontrado o zen, nem escrito O livro dos cinco anéis; talvez Kenshin estivesse sem sua cicatriz ainda retalhando. Ou, simplesmente, não haveria história alguma, mito algum a ser contado, nem alguém para escutar. 

 

Bibliografia 

FREUD, S. Além do princípio de prazer. Edição crítica bilíngue. Tradução de Maria Rita    Solzano Moraes. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. 

YOSHIKAWA, E. Musashi. Tradução do japonês por Leiko Gotoda. Prefácio de Edwin       O. Reischauer. São Paulo: Estação Liberdade, 1999. 

WATSUKI, N. Rurouni Kenshin. São Paulo: Editora JBC, 2016. 

Filme: Samurai X: a origem. Direção: Keishi Otomo. 2021. 


1. Analista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise (EBP/AMP), professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação de Linguística e Literatura da Universidade Federal de Alagoas.

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