SAMÃE1
Fernanda Segatto2
Marcia Cristina G. O. Frassão3
Valesca M. Lopes4
Foto: Gisele Gazzoni
Palavras-chave: autismo; conversação; discurso analítico.
O que há de insuportável na criança? Uma pergunta que nos orienta nas conversações do Laboratório Protocolo Aberto - Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança - CIEN/SC, e que nas práticas institucionais onde o diagnóstico dos transtornos na infância, mais especificamente o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista, demarcam a emergência entre crianças e seus pais.
Onde está o impasse?
Em Florianópolis, cidade do estado de Santa Catarina/Brasil, situa-se uma Associação de Pais e Amigos de Autistas que oferece serviços gratuitos e com valor social para pessoas com autismo. Trata-se de uma equipe interdisciplinar: psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, musicoterapeutas e outros. Um dos projetos dessa associação é mantido pela prefeitura da cidade, acessado em outro espaço institucional, com terapias em grupo para autistas, bem como acolhimento de pais, mães, cuidadores e pessoas que convivem com o autismo. Em um desses grupos de pais, a escuta se dá através da conversação, dispositivo proposto pelo CIEN. Com a proposta de encontros semanais, sem a constância dos mesmos participantes em cada encontro, o impasse parece estar sempre ali: o diagnóstico do autismo que impõe um não-saber-absoluto sobre o Outro. E isso basta.
Em uma das noites, uma das participantes mais constantes, inicia o encontro narrando “um dos momentos mais assustadores” da sua vida. Enquanto conta aos outros sobre a crise da filha, carrega no pescoço cordões coloridos que anunciam o diagnóstico do autismo, no corpo veste uma camiseta escrito supermãe, e na pele tem a peça de um quebra-cabeça colorido, símbolo do autismo, tatuado em um de seus braços, e nos diz: “(...) foi quando eu chamei o SAMÃE”. Ela ri da construção do neologismo, e inaugura o tom daquela conversação. Ela torna à história a partir da chegada do SAMU5 e faz aflorar as mães em estado de emergência. As vozes se soltam nas cenas vividas em 24 horas de alerta, e o desespero suspende o riso. Seguindo as premissas do Serviço de Saúde, o SAMU pretende chegar precocemente à vítima após ter ocorrido alguma situação de urgência ou emergência. A prioridade é prestar atendimento no menor tempo possível. Em outras palavras, o SAMU está o tempo-todo disponível para o outro.
A palavra que faz tudo se soltar, “SAMÃE”, parece um arranjo para tratar a emergência da crise que é de uma mãe, mas que, nesta escuta, se apresenta como de todas-as-mães. O serviço SAMU pode dar uma resposta diante da emergência a partir do saber médico-hospitalar colado no corpo da mãe 24 horas (como tatuagem), e possibilita uma saída para tratar isso que emerge como angústia, o insuportável. Não há tempo para elaboração, para o singular, para a falta, o real se faz urgente.
“Eu perdi o direito até de ficar doente”, diz outra mãe, que com a voz embargada fala sobre não haver tempo em meio ao tempo-todo que passa atenta à filha. “(...) não pode responder com comportamento reforçador, se ela pisa mais forte é o sinal que a crise vem, tem que lembrar do reforço positivo quando ela consegue se comunicar, é essa atenção o tempo todo, não dá pra relaxar nem um minuto, a gente nunca sabe o que está por vir”. Ao passo que são unânimes os movimentos de concordância dos outros participantes, a conversa rapidamente pende para o conforto que este espaço oferece porque “(...) é diferente. Não adianta entrar no papo de outras mães se tu está numa roda com outros pais. Eles falando de como é difícil com os filhos, nada se compara com o, desculpa a palavra, o inferno que a gente vive às vezes, eu fico pensando que aquilo que eles estão reclamando é tão pequeno perto do que eu vivo com a V. e se eu tento contar não funciona, vem uns conselhos que não serve pra nada. É diferente. O que a gente vive com os nossos filhos é muito diferente”.
Algo emerge: aqui, elas sabem. A certeza do diagnóstico é como uma blindagem que não permite o não saber como prévia a uma construção de saber. Aqui ele ganha forma de não-saber-absoluto. A infância como um devir, como aquilo que constrói sua posição no mundo através do Outro, a maternidade e a paternidade como um lugar de não garantias, não são deslocamentos possíveis com estes pais. Ao contrário, apontamentos para esta via de sentido causam ira e abrem confronto. Mas não o confronto da discordância que pode deslizar significados, e sim um confronto que beira a exasperação, como nos apontam as discussões sobre as conversações, um confronto que suspende o saber e beira a crise.
Abrir tempo na dimensão da realidade para que pais e mães de crianças autistas se encontrem com a palavra circulando, é escutar o Real. O insuportável de cada Um se exaspera na relação com o Outro, e revela um cotidiano terrivelmente cruel. Considerando que aqui o que faz frente é o pulsional desenfreado do autismo, a emergência dos pais é sobreviver a ele a custas do próprio corpo. “Todos os dias eu tomo tapa na cara, aqui, toda roxa de mordida, mas o de todo dia mesmo é o tapa na cara”. Então, como operar em um grupo tão marcado pelo diagnóstico e fazer vacilar um não saber tão sabido?
Possíveis efeitos do discurso analítico: a fissura no tempo-todo.
“Eu queria entender por que só eu que apanho dela?! Eu que passo o dia todo correndo de uma terapia para outra, que marco os médicos, que passo o dia todo disponível pra ela, pensando nas atividades, na rotina, mas quando preciso que ela faça alguma coisa é só agressividade pro meu lado. E é eu virar as costas, ela faz um carinho no pai dela, entende um comando, fala uma palavra que nunca tinha falado ...”, diz a mesma mãe que “toma tapa na cara”. Neste instante foi possível uma intervenção: “bom, parece que quando você não está olhando tem espaço para alguma coisa acontecer, não é?”.
A aposta na conversação, de abrir um intervalo entre essa mãe-toda e a criança, faz vacilar o estado de exasperação frente à filha com diagnóstico de autismo severo como se a única saída possível fosse estar o tempo-todo em vigília. O que temos para sustentar no laboratório, como num “protocolo aberto”, é possibilitar a invenção de um saber a respeito do que acontece, e não apenas a contenção da crise através do SAMU/SAMÃE.
Outra mãe, que relata surpresa sobre não ter apanhado da filha, conta um final de semana raro de alívio. “(...) eu já tava toda preparada pra apanhar muito dentro do carro, porque iam ser dias sem a rotina dela, sem as terapias, uma viagem, imagina, cheia de mudanças, fora do que ela está acostumada, levei até um travesseiro pra por entre eu e a cadeirinha dela. E para a nossa surpresa a viagem foi incrível. A V. viajou calma, sorrindo, lá ela sentou na mesa pra comer, conseguiu se comunicar com a gente, aceitou todos os combinados, não teve nenhuma crise, foi uma maravilha”. Enquanto esta mãe ri gesticulando indagações e confusão aos outros pais, a intervenção se dá a partir da cessão dos excessos: “que interessante isso que acontece quando a V. fica livre de toda a agenda das terapias diárias, não é? O que será que aconteceu que sem essas demandas, sem essas horas de treinamento ela ficou mais organizada, mais regulada, como vocês chamam?!
Neste momento essa mãe cai em uma gargalhada, e rindo, devolve a pergunta, pedindo um saber de especialista, “o que tu acha que aconteceu? Se tu sabe me diz que eu quero saber”. E apostando num “respiro” do que está entre o tempo-todo, a intervenção acontece: “parece que tem excessos aí, mas hoje nós precisamos encerrar a conversa, e podemos continuar no próximo encontro”.
A aposta da Conversação é uma aposta sobre o corte: uma vez instalada a conversação o dom da palavra, é preciso saber que o corte terá lugar. [...] Precisamente que o quê se põe em jogo, o gozo do blá-blá-blá, ficará suspenso.6
Dos significantes que circulam destaca-se o saber, e se pudermos falar sobre efeitos de conversação, mencionamos o não saber, agora sem hífen e não absoluto, menos colado no diagnóstico e mais errante, com pequenas fissuras por onde possa passar o ar que empurra as crianças para um lado e os pais para o outro.
Desta forma, qual a aposta do CIEN nesta experiência? O discurso analítico que não ensina, mas pode desarmar o que se apresenta como pronto.
1 Texto elaborado a partir das discussões da vinheta prática do Laboratório Protocolo Aberto apresentada na Conversação NRC-CIEN- A emergência da exasperação entre a criança e o adulto. Efeitos do encontro com o discurso analítico. Buenos Aires, 2023.
2 Fernanda Segatto - Psicanalista, responsável pelo Laboratório Protocolo Aberto.
3 Marcia Frassão - Psicanalista, Coordenadora do CIEN-SC, Coordenadora do Pandorga (Núcleo de Pesquisa e Investigação da Clínica de Psicanálise com Crianças). Participante do Laboratório Protocolo Aberto.
4 Valesca Lopes - Psicanalista, Coordenadora do CIEN-SC, participante do Laboratório Protocolo Aberto. Responsável pelo Laboratório Encontro dos Saberes.
5 SAMU- Serviço de Atendimento Móvel de Urgência é um serviço brasileiro de atendimento médico pré-hospitalar, acionado em casos de emergência. Foi idealizado na França, em 1986, como Service d´aide médicale urgente- que faz uso da mesma sigla “SAMU”.
6 LAURENT, E. Retomar a definição do projeto do CIEN e examinar sua situação atual. In: Brown, N; Macêdo, L. e Lyra, R. (Orgs.) Trauma, Solidão e Laço na Infância e na Adolescência: experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017, p.43.