Por que uma Clínica de Atendimento no ICPOL?1
Adriana Rodrigues2
Foto: Tatiane Fuggi
Palavras-chave: Psicanálise aplicada; Psicanálise na cidade; Clínica Pública de Psicanálise.
A história das clínicas públicas de atendimento nos institutos de psicanálise, desde Freud, sempre me causou muito interesse. A participação nesse cartel que se constituiu com a finalidade de investigar o tema pensando concretamente a criação de uma Clínica de Atendimento no Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina (ICPOL-SC) me levou a manter presente a questão do porquê uma clínica de atendimento no ICPOL neste momento e os possíveis impactos, ou ao menos os mais desejados, dentro e fora do Instituto.
Sabe-se a partir de relatos, cartas e documentos de Freud e seus contemporâneos, que a criação da primeira clínica pública de atendimento, em 1920, a Policlínica de Berlim, nasceu num importante momento de efervescência política e cultural, num intervalo entre guerras e entre o 2º e o 3º Reich, período de vigência da República de Weimar, marcada por uma democracia representativa. No mesmo período, e num contexto político semelhante, outras clínicas públicas de psicanálise foram criadas em Viena, Budapeste e mais tarde em Londres. A abertura democrática era convite e convocação para que a psicanálise se fizesse presente na pulsação destas cidades em franca transformação. Para além dos atendimentos clínicos e ambulatoriais, os psicanalistas ligados às policlínicas estavam nas escolas, institutos de cuidado e educação infanto-juvenil, universidades e inclusive nos debates sobre a ocupação dos espaços urbanos. Iniciativas que foram duramente interrompidas com a ascensão do nazismo. Passados mais de oitenta anos, o debate sobre a criação de clínicas públicas e centros de atendimento em psicanálise ganharam novamente um espaço privilegiado, também como resposta a um contexto político importante.
A partir do ano de 1999, a França tornou-se palco de uma séria investida do Estado com intuito de avaliar, regulamentar e submeter as práticas psicoterapêuticas ao poder médico, desqualificando a psicanálise em detrimento, sobretudo, das terapias cognitivo-comportamentais. Diante disso, a École de la Cause Freudienne (ECF) convocou um fórum ampliado para discussão entre as diversas instituições de psicanálise, movimento organizado por Jacques Alain-Miller, que, no mesmo período (2002-2003), iniciou a apresentação de seu seminário, tendo como argumento principal a convicção de que fazer avançar a psicanálise em sua complexidade, num período de tantas dificuldades, onde se pregava aos quatro ventos sua crise e limitações, exigiria Um esforço de poesia, constatação que se transforma em título de seu seminário. O seminário foi, de certa forma, um convite para que os praticantes da psicanálise ligados ao campo freudiano pudessem ir além dos muros das suas escolas e institutos, na perspectiva de que “clínica e política são inseparáveis”3, como afirmou Tarrab em participação no mesmo seminário.
Neste contexto, em 2003, foi criado o primeiro Centro Psicanalítico de Consulta e Tratamento (CPCT), em Paris. A aposta era de que a psicanálise encontraria aí uma forma de fazer-se presente na cidade, em contato com os problemas da vida cotidiana daqueles cujos parcos recursos não permitiriam um tratamento psicanalítico em consultório particular. Além disso, os espaços de supervisão, de reuniões clínicas, seminários e colóquios, colocariam os CPCTs como um importante espaço de pesquisa e formação, em conexão direta com os sintomas da atualidade. Para Pierre-Gilles Guéguen, colocar em marcha este projeto significava “ancorar na civilização e em seu mal-estar contemporâneo o discurso psicanalítico que existe desde Freud”4, o que faria desta iniciativa a promessa de um importante “destino político”. Passados quase 20 anos, não apenas os CPCTs continuam atuantes, como foram criadas muitas outras iniciativas semelhantes no Campo Freudiano.
Estas experiências desde Freud nos mostram que existe um enlace político que convida ou provoca a elaboração de uma resposta, uma ação política, ou mais contemporaneamente falando uma “ação lacaniana”. Iordan Gurgel, no texto intitulado “EBP uma comunidade analítica”, afirma que “promover a ‘ação lacaniana’, significa convocar os membros da Escola a estarem presentes na cidade. Tomar partido por uma psicanálise que extrapola o consultório privado para dar a palavra ao sujeito nas instituições e fazer intercâmbio com outros saberes”5.
Se as clínicas de atendimento foram criadas em um contexto político provocativo, qual seria o ponto que permite ou provoca esse enlace clínico-político no caso do ICPOL-SC?
Como já ouvimos muitas vezes de vários colegas, o percurso desenvolvido pelos psicanalistas ligados à EBP em Santa Catarina6 teve sempre a marca de um trabalho voltado à transmissão da psicanálise, constituindo-se como uma referência na difusão da psicanálise e formação de novos analistas. Depois de mais de duas décadas de um trabalho consolidado na esfera do que se pode transmitir via ensino, começam a surgir as condições para um próximo passo: o desejo de escutar, sob transferência, nos marcos de uma clínica de atendimento do ICPOL, o que ecoa na cidade. Parece-me que o enlace clínico-político aqui é a abertura para um novo momento, que vai além da posição de acolher as demandas pela oferta de ensino e formação teórica, e nos faz ir em direção à cidade.
E o que nos levaria a provocar esse deslocamento? De um lado, a riqueza da experiência em si, de poder ofertar essa escuta a pessoas que não poderiam acessar um tratamento psicanalítico pagando em dinheiro e, de outro, a possibilidade de recolher dessa experiência o que se apresenta como impasse, como novo, como um sintoma da época. Tentar fazer com esse novo, que talvez não venha a aparecer do mesmo modo nos consultórios particulares, pode produzir um efeito de formação dentro do Instituto e ao mesmo tempo um laço com a cidade. Ou seja, a aposta é numa tessitura que possa se fazer dentro e fora do Instituto. Fernanda Otoni Brisset nos diz que:
Um programa de ação lacaniana [...] implica levar adiante estratégias que engatem a intenção e extensão em psicanálise, numa Ação Dobradiça, em condições de transmitir o que cabe à política lacaniana testemunhar sobre o sintoma de nossa época e como dele se servir, na vida de cada um e na vida das cidades.7
Esse efeito dobradiça é próprio da relação entre a psicanálise pura e aplicada, ou, dito de outro modo, da relação escola e instituto, sendo o instituto o lugar da psicanálise aplicada por excelência. A criação de uma clínica de atendimento dentro do ICPOL marca esse lugar de importância da psicanálise aplicada, ao mesmo tempo que impulsiona a psicanálise pura, na medida em que a experiência deve causar no praticante da psicanálise o desejo de ser analisante e de “aplicar a psicanálise a si mesmo”, como disse Laurent8, que é em última análise o que sustenta a Escola.
Um dispositivo como o de uma clínica de atendimento permite, portanto, a estabilidade do tripé freudiano da formação do analista: a dimensão do ensino, do que é possível transmitir do acúmulo teórico clínico na trajetória de cada um com a psicanálise; o vivo da experiência no que a clínica de atendimento pode mobilizar, recolher e remeter para o trabalho entre vários, na construção e apresentação dos casos; o trabalho que só se pode sustentar em primeira pessoa, ainda que entre vários, na medida em que se avança na própria análise, e no trabalho de supervisão, o que remete diretamente à psicanálise pura, e à relação com a Escola.
Por fim, entendo que abrir um centro ou uma clínica de atendimento nos marcos do ICPOL é uma ação clínico-política, tanto na perspectiva ativa de oferecer o tratamento analítico para uma população que não tem condições de acessar um consultório particular, mas também como um modo de fazer com o desafio de presentificar a psicanálise no mundo. Marca um desejo de inserção na cidade, no ato de convidar os praticantes da psicanálise a oferecer o que se tem de mais precioso, o tempo de cada um, para que se constitua um espaço que faça um contraponto ao discurso do mestre.
Por fim, entendo que abrir um centro ou uma clínica de atendimento nos marcos do ICPOL é uma ação clínico-política, tanto na perspectiva ativa de oferecer o tratamento analítico para uma população que não tem condições de acessar um consultório particular, e também como um modo de fazer com o desafio de presentificar a psicanálise no mundo. Marca um desejo de inserção na cidade, no ato de convidar os praticantes da psicanálise a oferecer o que se tem de mais precioso, o tempo de cada um, para que se constitua uma iniciativa que faça um contraponto ao discurso do mestre.
Um intervalo onde o sujeito possa se deparar com seu inconsciente e com o que isso implica nas várias dimensões da vida. Afinal, se o inconsciente é a política, a política do sintoma, criar espaços para que se possa fazer com o sintoma de cada um, num laço com a cidade, é algo que trabalha a favor da pluralização, da democracia, da vida... na aposta em evitar o pior.
Em muitos momentos, Freud se referiu à psicanálise aplicada fazendo uso de uma terminologia bélica, defendendo a necessidade de ocupar as “trincheiras” numa guerra pela sua sobrevivência enquanto discurso, dispositivo, desejo e ato de resistência. Escutar sob transferência o que ecoa na cidade por essa via pode vir a ser uma forma tão potente quanto necessária, na perspectiva de manter a psicanálise viva, afiada e afinada com o tempo.
REFERÊNCIAS:
DANTO, Elizabeth. As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social. São Paulo: Perspectiva, 2019.
BRISSET, Fernanda Otoni. A ação lacaniana na cidade: a clínica do louco infrator. In: Atas do colóquio: A utilidade social da psicanálise. EBP/MG. Belo Horizonte, setembro/2014. Disponível em: http://docplayer.com.br/22148334-A-acao-lacaniana-na-cidade-a-clinica-do-louco-infrator-1.html. Acesso em: mar. 2016.
GUEGUEN, Pierre-Giles. A propósito da criação do centro psicanalítico de consultas e de tratamento da ECF. In: MILLER, Jacques-Alain. (2002-2003). Um esforço de poesia. Curso da Orientação lacaniana, aula 09, 29/jan. 2003. Inédito.
GURGEL, Iordan. EBP, uma comunidade analítica. Correio, São Paulo, nº 59, nov./2006.
LAURENT, Eric. Loucuras, sintomas e fantasias da vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum, 2011.
LHULLIE, Louise. A nova geografia da EBP e suas consequências: Seção Sul. In: Boletim modos de usar. 28 de outubro de 2022. Disponível em: https://ebp.org.br/sul/a-nova-geografia-da-ebp-e-suas-consequencias-secao-sul/
RODRIGUES, Adriana. A psicanálise e a política de assistência social brasileira: um diálogo possível. Tese. 2016. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/175921/345429.pdf?sequence=1&isAllowed=y
SOKOLOWSKY, Laura. Freud et les berlinois: du congrès de Budapest à l’Insitut de Berlin (1918-1933). Rennes: Presse Universitaires de Rennes, 2013.
TARRAB, Maurício. Política lacaniana e clínica lacaniana. Opção lacaniana, São Paulo, nº 36, maio/2003.
1 Texto apresentado na conversação Clínica promovida pelo ICPOL-SC em 20 de setembro de 2022. Ele é fruto da pesquisa realizada no cartel Clínica de Atendimento.
2 Analista Praticante, membro da EBP/AMP Seção Sul e associada ao ICPOL-SC.
3 TARRAB, Maurício. Política lacaniana e clínica lacaniana. Opção lacaniana, São Paulo, nº 36, maio/2003, p.3.
4 GUEGUEN, Pierre-Giles. A propósito da criação do centro psicanalítico de consultas e de tratamento da ECF. In: MILLER, Jacques-Alain. (2002-2003). Um esforço de poesia. Curso da Orientação lacaniana, aula 09, 29/jan. 2003. Inédito. p.4.
5 GURGEL, Iordan. EBP, uma comunidade analítica. Correio, São Paulo, nº 59, nov/2006. p.1.
6 Me refiro aqui ao percurso de mais de duas décadas de um trabalho voltado à transmissão da psicanálise na cidade e região, especialmente nos cursos promovidos incialmente pela Delegação Santa Catarina, depois Seção Santa Catarina e atualmente, a partir da nova geografia proposta pela EBP em 2017, integrando a Seção Sul. Importante destacar que com a fundação do ICPOL-SC, em 07 de dezembro de 2018, foi realizada uma nova organização do trabalho e os cursos, núcleos, ateliês, ou seja, as propostas de transmissão via ensino e pesquisa, foram reorganizadas e alocadas nos marcos do Instituto, com seu funcionamento independente da EBP, porém numa relação de estreita vizinhança. Cf: https://ebp.org.br/sul/a-nova-geografia-da-ebp-e-suas-consequencias-secao-sul/
7 BRISSET, Fernanda Otoni. A ação lacaniana na cidade: a clínica do louco infrator. In: Atas do colóquio: A utilidade social da psicanálise. EBP/MG. Belo Horizonte, setembro/2014. p.2. Disponível em: http://docplayer.com.br/22148334-A-acao-lacaniana-na-cidade-a-clinica-do-louco-infrator-1.html. Acesso em: nov.2023.
8 LAURENT, Eric. Loucuras, sintomas e fantasias da vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum, 2011, p.56.