O que é uma sessão analítica?
O tempo para que ela opere como sessão
Nohemí Brown1
Foto: Gisele Gazzoni
Palavras-chave: Elaboração analisante; Tempo; Ato analítico; Sessão analítica.
Quero aproveitar o convite2 do Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina para trazer algumas reflexões sobre este tema tão clínico e fundamental. E tão difícil, como comentou Romildo do Rêgo Barros, analista do Rio.
Esta é uma atividade preparatória para o XI Enapol em Buenos Aires, nos dias 29 e 30 de setembro e 1º de outubro. O Enapol é realizado a cada dois anos e o órgão responsável é a Federação Americana de Psicanálise de Orientação Lacaniana, a Fapol. Então, esta atividade visa, como gosto de dizer, esquentar motores para afinar conceitos. O tema “Começar a se analisar” foi proposto por Jacques-Alain Miller. Uma proposta de retomar um momento que pode ser especificado clínica e logicamente. Pelo menos, isso visa à formalização de uma experiência como a analítica para que não se reduza a uma pura prática.
Começar a se analisar
Um ponto do qual podemos partir é situar que não parece ser da mesma ordem começar a se analisar e começar uma análise. Começar uma análise implica certo endereçamento. Diante de um sofrimento, e as modalidades são várias, o indivíduo pode ser levado a procurar um analista. Portanto, precisa-se procurar um analista, como condição necessária para que uma análise comece. Podemos dizer condição necessária, mas não suficiente para que uma experiência analítica seja possível. Para Começar a analisar-se ou começar a se analisar, como muito informalmente se optou para o título, é necessário um passo a mais. Com ‘começar a se analisar’, introduz-se um elemento que implica naquele que procura um analista. Não é apenas um fala e outro escuta. É, de certa forma, um giro, uma torção, que faz com que disso que leva a um analista – que é o sofrimento – possa se circunscrever em uma queixa, encontrar um destinatário, mas também uma forma de leitura inicial.
Então, já temos um ponto: não é só começar uma análise, mas, como está no título, implica um verbo reflexivo que introduz o “se”. Trata-se de um analisar-se. Onde o sujeito da ação opera a ação para si mesmo, mas não sem alguém que o assista na leitura que se faz do inconsciente, como coloca Miller. Uma leitura “assistida”3. Esse “se” não é uma autorreferência – eu me autoanaliso; é um “se” que conta com a “assistência” do analista. Implica uma alteridade que habita o sujeito e seu corpo e que é vivida como insuportável, da qual não se quer saber e o analista está ali para essa torção. Nesse sentido, começar a analisar-se, de certa forma, implica uma experiência que se inicia, uma experiência inédita.
Um “se” que funda e inaugura uma experiência. Não é uma técnica, é uma experiência que não é natural, implica um giro para que o discurso analítico possa operar.
Lacan, em uma entrevista italiana que foi intitulada “Freud para sempre”, em 1974, diz: “Em psicanálise não há solução imediata, mas somente por uma longa e paciente investigação sobre os porquês. Podemos dizer, é uma prática que se ocupa daquilo que não anda, é terrivelmente difícil.”4
Então, de certa forma, é uma experiência que se ocupa do que não anda. Como fazer para que o que não anda se torne uma mola fundamental dessa prática e da elaboração analisante?
Não é uma demanda: ‘só me ajude, me interprete’. É, de certa maneira, isso que me acontece, acontece comigo dessa forma e em certos momentos. Às vezes já há uma leitura sobre o que me acontece. Um paciente me dizia que tinha sido diagnosticado com bipolaridade e tomava medicamentos, mas o pensamento de “dormir e talvez não acordar” não era da “doença”, tinha a ver com ele, pois se apresentou com coordenadas precisas. Então, de início, há uma leitura e pode entrar em uma certa intencionalidade de significação. Mas, para entrar na experiência analítica, é necessário um giro. E isso leva seu tempo e seus movimentos.
Esse giro não é sem o analista e seu ato. Retomando o que tinha colocado, procurar um analista é condição necessária, mas o que está em jogo é algo que escapa. É da ordem do “encontro” contingente com um analista. Um encontro que escapa ao cálculo e às recomendações de como fazer. Aponta mais, me parece, para o ato e a formação. Fala mais dessa presença em corpo.
A presença em corpo
Vou trazer um pequeno recorte das entrevistas com os pais e com a criança que, penso, podem nos ajudar a refletir sobre isso. 5
Um menino descrito como um redemoinho (torbellino). Tem seis anos, está iniciando o Ensino Fundamental, mas não consegue ficar quieto e, como se tornou comum, já foi diagnosticado como hiperativo. Os pais relatam que ele chora muito e diz que não o querem. O pai está sempre com pressa, e a mãe dedicada aos filhos em excesso, em uma posição de sacrifício.
A mãe considera que o filho é um “pobrezinho” porque nasceu com uma marca de nascença bastante grande.
Para os pais, essa criança está mais do que em um lugar de ideal, está no lugar de um objeto inquietante, objeto a, caído do desejo. A mãe não conseguiu fazer o luto do filho ideal que nunca teve.
Nos primeiros encontros, a criança não consegue brincar com nenhum brinquedo. Não escolhe. Inclusive diz que, em casa, não tem um brinquedo preferido. Porém, faz um equívoco, querendo dizer que tudo para a mãe era caro e que por isso não comprava coisas para ele, diz que tudo era “custoso para a minha mãe”. O significante “custoso” surpreende a criança quando o analista o repete. Custoso ressoa não só com relação ao dinheiro, mas também que tudo para a mãe é sofrido. Essa criança “pobrezinha” tomada pelo fantasma materno.
Depois de vários encontros, surge um medo noturno, que permite que um trabalho analítico se desdobre. Devido aos medos, vai dormir no quarto dos pais. Em uma sessão falando do medo, desenha um personagem que lhe produz muito medo. Ele escreve “KKKKK” e acrescenta, ao lado: “É uma risada malvada”. Embaixo disso coloca a frase “te aplasta a massa”. O analista, brincando com as palavras, lhe diz: “te aplasta a mama”. E ele, animado, escreve duas frases: “medo do demônio” e “joga enxofre” (em espanhol, “tira azufre”). O analista interpreta falando com ênfase: “quién sufre?” (“Quem sofre?”) “tirá sufre” (“jogá sufre”). A criança responde “surfa”. Divide a folha em dois com uma linha e, de um lado, coloca o demônio; do outro, ela se desenha sobre um skate surfando. O skate era o objeto que, depois de várias sessões, tinha sido recortado, extraído como o brinquedo que incluía em algumas brincadeiras no consultório. Que estatuto tem o “surfar”, esse significante? Surfar é uma invenção do sujeito, um significante novo que tem valor de invenção, que desliza algo da ordem do gozo de sofrer para surfar, produzindo uma separação do custoso sofrimento materno que o implica no tratamento.
A porta – um limiar
Para esta experiência que tem o estatuto de analítica, há uma entrada. Se pensamos em uma dimensão topológica, entra-se, passa-se de um lugar para outro. A imagem das portas, no cartaz do XI Enapol, foi retomada a partir de citações do próprio Lacan. Passar o limiar para uma outra posição na relação com a palavra e com os modos de dizer que leva em conta o real, o que não anda, o que irrompe. Como de forma muito precisa o diz esse paciente nas entrevistas preliminares.
Nesse sentido, podemos considerar a entrada em sua dimensão temporal. É um outro momento, uma passagem de um elemento “pre” liminar a uma experiência que começa.
Preliminar – do latim, praeliminaris, “o que acontece antes de se alcançar o limite e iniciar a ação”, de prae-, “antes”, mais liminaris, “relativo ao limite”.
Se seguimos essa definição que nos ajuda a pensar, é o que acontece antes para iniciar uma ação. Indica um limite que, a partir dali, se é ultrapassado, já é de outra ordem. Então, a experiência analítica é de outra ordem que as entrevistas preliminares, mas sem esse tempo anterior não há possibilidade dela. Portanto, como primeiro ponto, podemos pensar, é uma questão de tempo. As entrevistas preliminares são um tempo, não só cronológico, mas lógico. Situar um instante de ver para entrar no tempo de compreender e o momento de concluir. A conclusão implica esse “se” do título, se consciente ou não com a associação livre, com a possibilidade de estabelecer uma nova relação com o próprio dizer e isso o analista o sanciona. Um ato analítico que sanciona a entrada já oferece uma leitura possível das marcas de gozo fundantes, e contém coordenadas significativas do caso que encontrarão esclarecimentos durante a análise.
“Alcançar um limite e iniciar uma ação [...]”, diz a definição do dicionário. O “se” analisar implica uma ação sobre si mesmo, na condição de analisante. Uma posição analisante.
Nas conferências em Sainte-Anne, Lacan coloca com todas as letras que não há entrada em análise sem um trabalho preliminar. Ele diz: “Todos sabem – mas muitos o deixam de lado – a insistência que faço para aqueles que me pedem um conselho sobre as entrevistas preliminares na experiência analítica. Isso tem uma função para o analista, evidentemente essencial. Não há entrada em análise sem entrevistas preliminares”6.
As entrevistas preliminares são um tempo sem o qual a função do analista não se localiza. Destaco desta referência o termo função, função para o analista de situar a experiência e também de situar a função do analista para que essa experiência possa ter uma passagem de uma entrada de fato. Para que um analista se faça presente.
Uma observação sobre as entrevistas preliminares: não se quer dizer que nas entrevistas preliminares se permanece passivo. Ao contrário, já há uma ação, inclusive o analista tem uma maior amplitude de ação. E é fundamental para que essa experiência se inaugure. O que acontece depois da entrada em análise “é uma longa e paciente investigação sobre os porquês”, como diz Lacan.
O que temos como desafio é poder formalizar hoje: como essas entradas se fazem? Como se entra? E se começar a se analisar é da mesma ordem que a entrada em análise. Isso é algo que nos debates preparatórios foi colocado em questão e me parece pertinente precisar. Enfim, um dos eixos toca nesse ponto.
Desencadeamento da análise?
Quando alguém busca análise os motivos e modalidades são vários. Mas há um termo usado por Miller que me parece muito ilustrativo e que talvez valha a pena explorar. Ele diz que, no início da análise, há algo da análise que se desencadeia. Miller aproxima a neurose da psicose, dos fenômenos intuitivos.7 Se está seguro de que quer dizer algo, mas não se sabe o quê. Perplexidade, enigma – vazio enigmático. Aqui temos pontos para trabalhar, pois enigma e perplexidade não são da mesma ordem. Mas sigamos.
Que quer dizer ‘se desencadeia’? Parece-me interessante porque indica que algo da cadeia significante se desatrelou. E nessas primeiras entrevistas há que localizar o significante carregado de gozo. Isso é o que leva, em muitos casos, a procurar uma análise. O que leva a procurar um analista? O que se vai procurar é outro significante que se articule ao primeiro. O que quer dizer? Uma intenção de significação, mas que não é só se perguntar “o que quer dizer?”, mas buscar seu complemento no analista.
Essa ideia de desencadeamento me parece interessante porque há algo da cadeia que se desatrela, um S1 – S2. Lacan, no Seminário 19, o diz de uma forma à qual sempre volto e me intriga. Ele diz que “O primeiro passo da experiência analítica é introduzir nela o Um, como o analista que se é. Nós o fazemos dar o passo de entrada...”8.
Fragmento do depoimento de Mauricio Tarrab9
Em sua última análise, Mauricio pede uma sessão em uma viagem e, por telefone, lhe respondem que já era tarde, que talvez em outra viagem. O “sentimento de chegar tarde a tudo” que lhe acompanha o tempo todo se faz presente com intensidade. Alguns dias depois, ele volta a ligar e diz que está disposto a viajar imediatamente. O analista interroga: o que é imediatamente? Dois dias depois está no avião. O que lhe faz sofrer é a angústia ligada ao medo de morrer jovem de um ataque do coração e deixar órfã a filha.
Ele começou uma primeira análise ainda jovem. Mesmo com uma melhora significativa, isso o deixou com um sintoma, uma paralisação na vida profissional e uma imobilidade do corpo devido a ferozes contraturas.
Nas entrevistas preliminares de sua última análise, surge o significante “paralisia”, um significante que lhe produzia horror na infância. Um significante que marca o corpo e é causa de gozo. Aos cinco anos, foi ao psicólogo por causa de uma fobia intensa. Esse encontro com o psicólogo foi realizado em uma instituição onde se reabilitavam crianças vítimas de paralisia... infantil. Daquela fobia ficaram restos de uma interminável série de sintomas obsessivos e a ideia ameaçante de contrair uma doença incapacitante, assim como a interpretação perdurável sobre o desejo da mãe: ela me quer doente.
Teve um alívio do sofrimento, mas não um saldo de saber sobre seu modo de gozo. Isto foi confirmado com três sonhos anteriores à última sessão dessa primeira análise: primeiro sonho, entra na habitação e se vê morto; segundo: o pai lhe diz, mostrando pedaços de corpos, que ele devia cuidar disso. E terceiro: ele está no consultório satisfeito, com todos os objetos que representam seus ideais, mas no divã está uma criança órfã que ele abraça.
Apesar de tudo o que esses sonhos pudessem prometer para a análise, essa análise foi dada por terminada. Essa sequência, que ele não esqueceu, foi levada nessas entrevistas e foi por fim escutada, merecendo uma primeira interpretação: aquele analista fechou a porta da análise. Com essa interpretação, abria-se a porta e ele entrava “órfão” na transferência.
Órfão – um significante que o perturba, mas que, sob transferência, abrirá para a experiência analítica. Essa é a marca da entrada em análise de Tarrab. Sob transferência, o sintoma não se acalma, a ameaça de estar exposto à fatalidade se intensifica, mas será essa intensificação o que permite interrogar a posição ideal que sustentava, a de “cuidar do outro”.
Retomo o argumento do XI Enapol, sobre a importância do começo: “O início de uma experiência de análise poderia tornar legível como lalíngua escreve no corpo a letra do encontro traumático com um gozo desconhecido, as marcas do trauma, a fixação do gozo, o mal-entendido fundamental.”10
Começar a se analisar, uma experiência inaugural de uma série
O “se” quer dizer que não me reconheço nisto que digo, não estou aí, mas, de certo modo, ainda assim estou aí. É reconhecer que o modo de dizer próprio à análise é o que digo em análise, é uma leitura do inconsciente. Esse “se” implica supor uma leitura do inconsciente, uma leitura que se apresenta nisso que me escapa.
Uma análise se faz na forma de sessões. São lapsos de tempo e espaço, um recorte que faz série, e implica o que desliza, o que cai, o que passa. Não é à toa que Miller trabalha a questão da sessão analítica em seu curso: Os usos do lapso11. O lapso é um termo para designar o inconsciente. Uma cura sob a forma de sessões. Há uma relação essencial entre o inconsciente e a série de sessões?
Para essa série, é necessário que os ditos, os enunciados do paciente, não remetam só a algo que não se sabe o que quer dizer. É necessário que esses enunciados sejam colocados na conta do inconsciente.
Para que a palavra tome este valor, são necessários um começo e um destinatário. Cada sessão de análise – com o que implica de contingência, quer dizer, de acaso e de miséria – afirma que o que vivo merece ser enunciado... “em uma sessão de análise, não falamos para o analista, mas para o ‘meu’ analista; falamos com alguém extraído de um grupo. Com ele temos um laço que é a língua, e língua é de todos, mas o destinatário é único. A sessão analítica é um espaço de gozo que escapa à lei do mundo, mas que também permite que esta lei do mundo exerça seu reinado – diz Miller –, pois proporciona um respiro, uma pausa, enquanto prossegue nessa incansável extração de mais-valias que justifica que existamos”12.
Para que se opere como sessão, com essa forma de respiro, pausa, e extração que permite uma existência, é necessário que se entre pela porta.
1 Analista praticante, membro da EBP/AMP Seção Sul. Responsável pela EBP no XI Enapol (2023).
2 Quero agradecer o convite, feito pela diretoria do Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação de Santa Catarina, realizado por Maria Teresa Wendhausen e Flávia Cêra.
3 MILLER, J.-A. Come iniziano le analisi? XI Enapol. Textos de orientação. Disponível em: https://enapol.com/xi/pt/portfolio-items/come-iniziano-le-analisi/?portfolioCats=149.
4 Entrevista a Jacques Lacan por la escritora y periodista Emilia Granzotto titulada: Freud per sempre, publicada para la revista Panorama - editada en Roma - en su número del 21 de noviembre de 1974.
5 BERKOFF, M. Niños en “apuros”. La detención como preliminar a todo tratamiento posible. In: GOLDBER, S.; STOISA, E. Psicoanálisis con niños y adolescentes 3. Buenos Aires: Grama, 2011, p. 143 – 148.
6 LACAN, J. O saber do psicanalista, lição de 2 de dezembro de 1971. Inédito
7 MILLER, J.-A. ¿Cómo comienzan los análisis? In: MILLER, J.-A. Donc. Buenos Aires: Paidós, 2011. p. 299-300.
8 LACAN, J. O seminário, livro 19: ...ou pior. (1971-1972) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. p. 123.
9 TARRAB, M. Entre relámpago y escritura: testimonios de pase y otros textos. Buenos Aires: Grama ediciones, 2017.
10 MATTOS, S.; ZACK, O.; GIRALDO, M. C. Argumento. Disponível em: https://enapol.com/xi/pt/argumento-e-eixos-tematicos/.
11 MILLER, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2010.
12 MILLER, J.-A. Un esfuerzo de poesía. Buenos Aires: Paidós, 2016. p. 159.