O objeto a: da angústia ao desejo1
Aline Akina Arai2
Fred Stapazzoli, sem título, 2023.
Palavras-chave: angústia; objeto a; desejo.
Objeto da angústia, objeto do desejo
O tema da angústia sempre me capturou. Mas foi me deparando com a noção de objeto a que pude relacioná-la com a questão do desejo, outro tema muito caro a mim. É a partir da conceitualização de objeto a que Lacan se opõe a Freud ao afirmar que a angústia não é sem objeto, o que não significa que o objeto a seja o objeto da angústia propriamente dito, uma vez que não se trata de um significante ou um objeto especular. “Essa relação do não ser sem ter não significa que saibamos de que objeto se trata”3. Em relação ao objeto do desejo, o objeto a também cumpre uma função especial de causa do desejo, isto é, de pôr o desejo em movimento.
Assim, fica evidente que o objeto a não é um objeto como os outros. Segundo Jacques-Alain Miller, em Introdução à leitura do Seminário da Angústia, afirma que a angústia “é uma via de acesso ao pequeno a. Ela é concebida como a via de acesso ao que não é significante”4. Nesse sentido, o objeto a não é um significante, não possui um nome ou uma imagem, é uma letra a minúscula, um resto. Essa noção de resto se articula com a relação entre o sujeito e o Outro. “É a partir do Outro que o a assume seu isolamento, e é na relação do sujeito com o Outro que ele se constitui como resto”5. Na divisão do sujeito no encontro com o Outro, sobra sempre um resto, desprendido da ordem simbólica.
O objeto a, portanto, é um lugar vazio. O a minúsculo faz alusão não somente ao pequeno outro (autre, em francês), como também parece representar na sua escrita uma borda, um lugar, de fato, vazio.
Para Miller, no que diz respeito à angústia, “trata-se, quando muito, de atravessá-la”6. Assim, se no primeiro ano do curso minha questão rondava os tratamentos possíveis para a angústia, agora me coloco a pensar a angústia como uma via possível para o tratamento.
Uma das articulações lacanianas entre o desejo e a angústia se dá na indicação de uma “relação essencial da angústia com o desejo do Outro”, evidenciada no grafo do desejo com a questão “Che vuoi? Que queres?”. A fantasia entraria aí como uma resposta mais suportável do sujeito para o enigmático desejo do Outro. No entanto, a angústia – como afeto que não engana, e para além da angústia de castração – surgiria com a proximidade do objeto, ocupando o lugar da falta, ocupando o lugar vazio representado pelo objeto a. “Nos angustiamos, portanto, sempre diante de algo. Não diante de uma ausência, mas primordialmente, diante da presença de algo do registro do real, algo que pode ser definido também como presença de uma ausência”7.
No Seminário 8, Lacan também afirma que “o sinal de angústia tem uma ligação absolutamente necessária com o objeto do desejo. Sua função não se esgota na advertência de ter que fugir. Ao mesmo tempo em que realiza esta função, o sinal mantém a relação com o objeto de desejo”8. Assim, a angústia é de fato uma via, uma possibilidade de sustentação do desejo, “é o último modo, o modo radical, sob a qual o sujeito continua a sustentar, mesmo que de uma maneira insustentável, a relação com o desejo”9.
Nesse sentido, Eric Laurent aponta que as contribuições feitas por Lacan sobre a angústia questionam o fim de análise freudiano, cujo desejo se deteria no rochedo da castração para os homens, e no penisneid para as mulheres. A concepção do passe lacaniano, segundo Laurent, estaria na tarefa de “fazer seu desejo entrar suficientemente nesse a irredutível”10. Isto é, “durante uma análise, uma vez que se isolou o resto irredutível de toda a dialética fálica, como fazer deste resto, um objeto causa”11.
“A única coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo”12. Esse é um princípio célebre de Lacan em relação à ética da psicanálise. Com isso, Lacan radicaliza o repúdio a um ideal moral para formalizar uma ética da psicanálise. Portanto, uma das funções do analista seria a de “ensinar o sujeito a nomear, a articular, a fazer passar para a existência, este desejo que está, literalmente, para aquém da existência, e por isto insiste”13. Nesse sentido, é importante ressaltar que o reconhecimento do desejo só é possível no registro simbólico, articulado à fala. No entanto, é sabido que a fala não pode representar toda a verdade sobre o desejo inconsciente, sobra sempre um resto. Resto, este, que garante a condição desejante do sujeito.
Desse modo, é importante que um analista esteja atento às demandas do analisando. Se, por um lado, não se trata de procurar atender às demandas do analisando, tampouco se trata de frustrá-las totalmente. É verdade que ao atender à demanda do analisando se corre o risco de tamponar o desejo, no entanto, a frustração da demanda não deve estar dada indiscriminadamente. É necessário que a frustração seja vista como uma forma de impelir o analisando a seguir trabalhando, assim como permite que os significantes atrelados a ela possam aparecer no tratamento.
Além disso, resta saber também como manejar o desejo que o analisando lhe atribui, uma vez que, em uma análise, o analista ocupa o lugar do Outro. Nesse sentido, é preciso que o suposto-desejo do analista mantenha o analisando em trabalho. Ou seja, é necessário que o analisando não tenha certeza daquilo que o analista espera dele, para que seja possível, assim, fazer emergir a verdade singular sobre o desejo de cada analisando.
Diante disso, retomo minha questão inicial em relação ao desejo e à angústia. É certo, portanto, que a angústia se trata de um instrumento de orientação indispensável no percurso de uma análise, uma vez que aponta para o desejo. No entanto, é também indispensável ressaltar, como disse Lacan no início do seu seminário sobre a angústia, “sentir o que o sujeito pode suportar de angústia os põe à prova a todo instante”14. Destaco aqui a palavra escolhida por Lacan: “sentir o que o sujeito pode suportar de angústia”, nos dando uma pista de que cabe também ao analista atentar-se à angústia que sente no próprio corpo diante do analisando.
Referências
FIGER, Arthur. (2013). Entre gozo, angústia e desejo: articulações e paradoxos. Orientadora: Ana Maria de Toledo Piza Rudge. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia, 2013. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/22405/22405.PDF
LACAN, Jacques. (1954-55). O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
_______. (1959-60). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
_______. (1960-61). O seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
_______. (1962-63). O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
LAURENT, Éric y otros. (2014). Cuerpos que buscan escrituras -1 ª ed.- Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Paidós. Cap. De la angustia a la mujer.
MILLER, Jacques-Alain. (2005). Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jacques Lacan. Opção Lacaniana nº 43.
1. Texto desenvolvido para o Curso de Psicanálise de Orientação Lacaniana (CPOL), do Instituto de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina (ICPOL-SC), sob orientação de Flávia Cera
3. Lacan, J. O seminário, livro 10: A angústia, página 101.
4. Miller, JA. Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jacques Lacan, página 11.
5. Lacan, J. O seminário, livro 10: A angústia, página 128.
6. Miller, J. Introdução à leitura do Seminário da Angústia de Jacques Lacan, página 8.
7. Figer, A. Entre gozo, angústia e desejo: articulações e paradoxos, página 82.
8. Lacan, J. Seminário 8, página 444.
9. Lacan, J. O seminário, livro 10: A angústia, página 445.
10. Lacan, J. O seminário, livro 10: a angústia, página 366.
11. Laurent, E. Cuerpos que buscan escrituras, capítulo “De la angustia a la mujer”, sem página.
12. Lacan, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, página 376.
13. Lacan, J. O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, página 287.