O impossível de dominar e a presença do analista1
Fernanda Otoni Brisset2
Foto: Gisele Gazzoni
Palavras-chave: Presença do Analista; Impossível de Dominar; Começar a Analisar-se.
Agradeço o convite para estar aqui hoje a Maria Teresa Wendhausen, diretora do ICPOL, aos colegas da Diretoria do Instituto e em extensão a todos os amigos e colegas da Seção Sul.
O Instituto de Psicanálise é um braço do campo freudiano que acolhe pessoas interessadas em se aproximar da psicanálise, de seus conceitos e pragmática clínica, desejosos de operar com o discurso analítico a partir da atualidade do sintoma, o real de sua época.
A proposta desta conferência articula o impossível de dominar e a presença do analista. Interroguei-me, enquanto preparava estas notas, por que abrir as portas das atividades do Instituto, neste ano, a partir daquela articulação. Lembrei-me da minha aproximação da psicanálise e como foi que, naquele instante da minha formação, me dirigi à Escola supondo que ali poderiam me ensinar a operar com o discurso analítico e a ser uma analista. O que logo descobri é que “o discurso analítico não se ensina”3, não se transmite psicanálise da mesma forma como se ensina uma profissão na universidade. Portanto, já sabíamos, pela nossa própria experiência, que o discurso analítico não é da mesma ordem que o discurso universitário e o discurso do mestre, tal como esclarece Miller: “[...] um discurso é uma forma de dominação na medida em que organiza. (…) e é neste sentido que o discurso analítico exclui a dominação: porque não organiza um mundo.”4. Talvez por isso, Lacan, quando foi chamado a defender o departamento de psicanálise na Universidade de Paris, começou por afirmar que “o regime do discurso analítico é profundamente distinto do discurso universitário e de todos os outros discursos”, pois é um “discurso que exclui a dominação […] não tem nada de universal: por isso não é matéria de ensino”5.
Sabemos que é próprio do discurso analítico atiçar em cada sessão uma variável singular, nomeada por Lacan como objeto pequeno a: próprio a cada um e que não coincide com uma verdade universal, pois não se deixa apreender na rede simbólica. Portanto, não é matéria sobre a qual se pode ensinar porque, fora da ordem simbólica, remete a uma ausência, uma perda que uma análise testemunha em cada caso: o objeto está desde a entrada perdido aí, portanto, não domina e nem se submete, mas seu valor está em dar passagem ao que causa, dar passagem à causa do desejo.
Dito de outra maneira: o que agencia, alavanca e anima o discurso analítico é justamente esse objeto indomável, que entra em cena por sua vacuidade. Toca o corpo em seus orifícios, o ativa evanescente com sua presença gasosa (gozosa), contingente, aleatória, sem valor universal. Efetivamente, o saber que se experimenta aí é um saber en corps, ele não dura e não serve para todos. Miller dirá que esse saber “é para o Um sozinho, é para ele, somente ele – um saber que se desvanece enquanto se pretende universalizar, aplicar ou fazê-lo valer para todos”. A experiência analítica, por essa via, acede a um saber que é próprio, original, que participa da montagem do sintoma, da loucura de cada um e de mais ninguém.
O discurso analítico encontra-se, então, do lado da liberdade de expressão da palavra, da variedade, da diversidade, em oposição ao pensamento único que se pretende universal e atropela as soluções singulares, como se fosse possível tudo determinar. A matéria do discurso analítico “é o gozo, cujo real dissolve toda pretensão de encerrar o que quer que seja em uma última palavra”6. Isso move a engrenagem do discurso analítico, isso que não se ensina, mas se experimenta.
É essa experiência viva que impulsiona o desejo de transmissão do que aí se passa junto a mais alguns outros. É desse desejo que surgiu a psicanálise, do que desse encontro se escreveu em Freud e em Lacan. Desde então, esse desejo alavanca a leitura das teorias psicanalíticas e os debates que incitam em torno desse impossível que se experimenta.
Mas o que está sobre a mesa do banquete dos analistas hoje? Quais são as questões sobre as quais os analistas têm se debruçado e conversado num esforço de elaboração provocada? Se cruzamos o programa dos três eventos maiores de nossa comunidade analítica, no Brasil, na América Latina e no vasto campo da orientação lacaniana, há um fio condutor para ler o que se passa hoje com a psicanálise em seu mundo? A EBP, em seu Encontro Brasileiro de 2022, trabalhou o tema “Analista: presente!”. A Fapol abriu suas portas rumo ao XI Enapol, em 2023, cujo tema que nos convoca ao trabalho é “Começar a se analisar”. Por fim, os analistas membros da Associação Mundial de Psicanálise, nas sete Escolas, se preparam para o Congresso Mundial de Psicanálise, que irá acontecer em fevereiro de 2024 sob o tema “Todo mundo é louco”.
São propostas aleatórias ou haveria um grão em comum para ler essa constelação? O que esses eventos nos transmitem sobre a experiência analítica hoje, o real da clínica, seus impasses, a transmissão da psicanálise, e o que pode a psicanálise face ao debate próprio de nossa época? Qual o ponto de encontro entre o “Analista: presente!”, “Começar a se analisar” e o aforisma “Todo mundo é louco”? Há um real que os provoca?
Essas questões me puseram a trabalho e, mesmo sem concluir, entrego a vocês minha cruzada até aqui, convidando aos que se sentirem provocados a agregar a esse esforço de leitura o delírio que lhes ocorrer…
O Encontro Brasileiro, Analista: presente!, talvez possa ser lido como uma resposta da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) ao impossível de dominar que abalou nossas vidas através da pandemia de Covid-19. Se não é novidade para a psicanálise que a relação não existe entre dois, podemos dizer que ali a não relação e seu impossível se impuseram como uma necessidade, como uma possibilidade de sobreviver frente a esse acontecimento mundial contingente. Contudo, a resposta mundial à pandemia contou com um saber, uma tecnologia do distanciamento já lá, desde antes, e fez dele o colchão para o Um-sozinho seguir dormindo.
Romildo do Rêgo Barros, diretor da EBP, chamou a atenção para a importância que, naquelas condições, a tecnologia digital passou a ter e como esse fato forçava a psicanálise a se desdobrar sem perder sua orientação. O tema do Encontro, Analista: presente!, chegou-nos como uma vociferação à altura desse tempo.
No primeiro sentido do tema do Encontro, temos um analista que diz presente! às demandas que recebe. É importante pensar que essas demandas, à semelhança das marcas de cada época, são mutáveis. São “desdobráveis [...]. O analista, como a mulher, é desdobrável, e isto tem consequências. A primeira delas é que ele, assim como ocorre quando recebe uma demanda de análise, não sabe de antemão o que vai acontecer, e menos ainda quando lança mão do seu computador ou do seu telefone, para entrar em contato com um paciente. Só o tempo dirá com maior clareza os efeitos e o sentido desse acréscimo e desse gesto inédito, que, ao que tudo indica, vieram para ficar, de alguma forma. Uma coisa pelo menos é certa: após essa experiência, nós nos tornamos sem dúvida mais sensíveis à contingência, longe do dogmatismo que a epidemia reserva aos negacionistas mais empedernidos.7
Não podíamos negar, naquele instante em que o vírus e a peste se cruzaram na política e nos corpos, rasgando a paisagem de um suposto estado democrático em resposta à passagem de um real indizível.
Em entrevista da LWT8 com Jean-Marie Guéhenno sobre seu livro O primeiro século XXI: da globalização à desintegração do mundo, vimos que ele nomeia a causa do mal-estar atual: “o individualismo radical”. Sua leitura conversa com o que evocamos com o sintagma “eu sozinho” e surpreende ao apontar que para atravessar tal mal-estar devemos apostar no pluralismo. Essa também é a aposta da psicanálise, tal como Miller evoca em sua entrevista “Lacan et la politique”9, pois sua prática está ligada à liberdade de expressão e ao pluralismo.
O autor nos conduz a refletir sobre o que faz uma sociedade, sobre o que faz os seres humanos trabalharem juntos, viverem juntos. Não é natural, há uma fragilidade operante no interior de toda sociedade. Para ele, com a aceleração da globalização, houve a ideia de que nos encontraríamos como cidadãos do universal. Mas diante de um mundo imenso, “o encontro do indivíduo com a globalidade cria uma forte angústia e que o resultado natural, quase lógico dessa angústia, era efetivamente a retirada identitária, para tentar encontrar uma concha na qual podemos nos refugiar”10. Ele afirma que todos esses indivíduos que saíram de sua concha, que se encontraram no ar livre da universalidade, ficaram com medo e que a resposta identitária é onde as pessoas se agarraram para não se perder em um Universal sem fronteiras. O liberalismo político e econômico encerra a batalha das ideias e aprisiona a todos numa mecânica global, em que parece não haver mais uma dimensão coletiva. “A reação identitária, é a consequência natural desse esmagamento do indivíduo, em que se busca uma identidade na qual enraizar-se para não se perder nessa massa universal que vai lhes dominar.”11 O indivíduo contemporâneo se desligou das estruturas mais amplas e encontra-se muito agarrado aos seus gozos privados, ou seja, “se encontram hoje sem armaduras, sem amarra. Então, eles correm o mundo. É a era da selfie”12.
Guéhenno traz um exemplo interessante:
Um dia, eu estava em Kyoto e havia todas essas japonesinhas com seu stick – o pequeno bastão para manter o telefone um pouco mais longe de si e fazer uma bela selfie. Nessas paisagens magníficas, a única coisa que elas podiam olhar eram elas mesmas. Todo o resto do mundo não passava de uma espécie de "caldo", como se diz, de sua própria imagem. Uma imagem cada vez mais vazia, inclusive porque quando você olha o que se vê no Facebook, em todas as mídias sociais, as pessoas comunicam cada vez mais e há cada vez menos coisas a comunicar. Há uma avalanche de signos que têm cada vez menos significação. Essa espécie de seguimento sem fim de um si mesmo impossível de encontrar é extraordinariamente angustiante.13
Essa leitura conversa com o que dizem Jacques-Alain Miller e Éric Laurent sobre o Outro que não existe. A pandemia deixou mais evidente a rapidez progressiva, que já estava em curso, do investimento cada vez maior em sistemas de automação assépticos gerados por circuitos elétricos e inteligência artificial com consequente deslibidinação do Outro. O consumo dos objetos da técnica provoca curto-circuito do arranjo do gozo via significante. As imagens parecem ter autonomia. Henri Kaufmanner, em sua tese de doutorado,14 faz uma interessante articulação a partir do esquema L de Lacan, evocando que o lugar de alteridade dado ao Outro naquele esquema parece ser ocupado hoje pelo Outro da tecnologia. Lugar de onde se capturam as imagens que não produzem estalos. Não há furo, opacidade.
Essa passagem me esclareceu a função do «mais alguns outros» em Lacan referente ao analista e ao ser sexuado que se autoriza de si mesmo. A autorização de uma existência é um efeito retorno da caixa de percussão do significante que vivifica os corpos e requer um corpo outro, como placa sensível, para ressonar a matéria sonora. A vida libidinal é efeito do choque dessa conexão. Mas se o Outro é o da tecnologia ativado por sistemas elétricos automatizados, como operar a função do S de A barrado, a sua função de ressonância, de placa sensível, de furo por onde a pulsão faz a passagem de seu circuito?
Essa leitura me ajudou a pensar que o Encontro Brasileiro, ao vociferar “Analista: presente!”, ao mesmo tempo em que afirma a presença do analista no mundo, evoca sua função enquanto um ato, um corte! A aposta da função da psicanálise nesse mundo é a de que, ao se colocar como parceira sintoma, tem por efeito perturbar o individualismo radical instalado na concha da automação identitária, na sociedade delivery de consumo.
A presença do analista é uma presença que faz par com a urgência, verifica o real, abre passagem ao que é da existência, testemunha e faz reverberar o que do singular se amarra, se instala e participa do sintoma enquanto laço social, desde o começo de uma análise. Ao dar lugar à verdade variável de cada um face ao universal, evoca o quão é invariável a matéria da desordem que participa da lógica do falasser. Essa desordem, impossível de dominar, é obra do gozo como tal, como escreve Éric Laurent: “o gozo é o que faz desordem no simbólico e não pode encontrar aí nem seu lugar, nem seu laço: ele se apresenta como irrupção ou emergência”15. E é justamente essas irrupções de gozo que estão no cerne dos impasses que se instalam como questões de angústia para o sujeito e em questões de sociedade.
Não seria justamente nessas situações que a psicanálise se oferta como um parceiro que testemunha a passagem do real, um furo na tela, uma perda, ao seguir o falasser em seu saber fazer com o que daí escoa? O Encontro Brasileiro, ao vociferar “Analista: presente!”, ao instalar a fenda entre dois, abre passagem ao indeterminado, contingente, ou seja, “uma porta aberta” a outra diz-mensão, por onde cada um é convidado a autorizar-se de si mesmo, junto a mais alguns outros. Essa abertura a uma outra dimensão não seria um convite a começar a se analisar?
Começar a se analisar, tema do XI Enapol, pode ser lido como um convite da psicanálise para acolher e tomar a desordem do gozo como uma abertura rumo ao que é mais original, que não cabe no universal; um fazer de verdade16 com o que há de seu e de mais ninguém.
Podemos ler no argumento do XI Enapol17 a pergunta: o que leva um sujeito a procurar um analista nestes tempos que correm? Pergunta que a clínica formula como efeito de um tempo em que verificamos a palidez do Outro, uma época que tende à desvalorização do saber, favorece a autogestão, promove a liquidez dos laços amorosos e empurra para a autopercepção, versão mais recente da negação do inconsciente, em um mundo pautado, como vimos, por um individualismo radical. E então, nesse cenário, como se iniciam as análises hoje?
Lacan afirmou que “no começo da psicanálise está a transferência. […] como é isso hoje?”18. Partamos da ideia de que tem algo que muda e algo que segue como sendo o mesmo.
A transferência surge de uma causalidade que opera em outro nível, no âmbito da satisfação e não da significação. Parece que isso não mudou. Desde Freud, sabemos que há um resto pulsional, pronto por antecipação, que só quer se satisfazer. A experiência analítica visa percorrer a trilha dessa substância. Se «de repente eu realizo o fato da sua presença»19, isto mostra sua força de atração: transferência, mas também, resistência. Há tração!
O falasser arma suas defesas, numa montagem que organiza seu mundo, se estrutura em torno de um furo original, como uma defesa ao real. Hoje, a sociedade superconectada oferece meios para o sujeito se desligar e se refugiar na concha virtual, sozinho, sem um corpo outro a perturbar sua defesa. Mas não há blindagem que resista à passagem do real. Isso não muda.
O Outro contemporâneo, face à emergência do real, oferta o consumo do objeto técnico, o saber cientificista, o algoritmo, o metaverso; outros preferem a religião e seu Deus obscuro. A oferta da psicanálise é outra: Começar a se analisar! Fazer algo da emergência ao falar mais sobre isso, sem obturar a fenda entre dois, pois a orientação para o real está presente desde a primeira sessão.
Podemos ler em Lacan, no seu último escrito, “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”20, que o inconsciente não é só simbólico, é também real. O real vem primeiro. O sujeito supõe algo lá onde está o impossível de apreender. Essa suposição é um fato de estrutura, uma defesa ao real. O amor ao inconsciente está nisso implicado e conduz à passagem do inconsciente real ao inconsciente transferencial como modo de suplência à inexistência. Fale mais sobre isso tem seu alcance por remexer no tecido, na textura do inconsciente. O texto se desdobra em formas fractais, variáveis de sua leitura, em ficções que concatenam esseUm solto (S1) – “significante sem mestre”21, sem dono, impossível de dominar. EsseUm sozinho urge sem par. É a transferência que força sua passagem rumo a um S2 qualquer. Por meio da associação livre, esse Um insensato se articula em discurso. O resto pulsional encontra na calha simbólica um escoadouro. Essa conjunção libera uma satisfação. O sujeito busca articulá-los, extrair deles um efeito sentido, um dizer que lhe diz respeito. A mola da transferência, desde Lacan, se impulsiona desde o vazio de sentido, o furo no saber, desde “onde o significante encontra-se separado de sua significação”22.
Miller, em seu texto “Come iniziano le analisi”, texto de orientação para o XI Enapol, nos leva a saber que as análises começam como as psicoses, o sujeito encontra aí o significante em seu poder desencadeador. “O começo da análise é estritamente assimilável a um verdadeiro desencadeamento.”23 O sujeito é tomado por uma certeza intuitiva. O significante diz algo, porta uma mensagem, uma enunciação indizível, e isto lhe diz respeito, mas não sabe ler o que quer dizer.
Ricardo Seldes irá dizer, em seu texto “O operador da perplexidade”, que “o significante Um é sempre elementar, não sabemos o que ele significa, ele deixa o sujeito na perplexidade, à espera do saber, do S2 ou delírio”24. Um vazio enigmático abre a porta, supõe no Outro o (x) impossível de dominar e de saber. Brota o amor a um saber suposto que se sabe insabido e que quer se concatenar na textura libidinal de uma outra maneira.
“A análise é uma leitura do inconsciente assistida pelo analista”25, pois essa tessitura libidinal não se faz sem o Outro. Miller observa que Freud percebeu que ele era objeto de uma aderência especial do sujeito investido no analista, algo se supunha ali, no analista, e é esse objeto que atraía a libido. O analista é tomado pelo campo dos investimentos libidinais. Sua presença ganha a forma de a, daquele resíduo ativo, provoca uma atração a esse lugar vazio de sentido e faz o sujeito falar, entregar o que fala nele mais além do que sabe dizer. É quando o sujeito acede a uma outra dimensão.
Essa atração a essa outra dimensão reduz o campo perceptivo; o mundo lá fora apaga seu ruído e o sujeito é reenviado ao que ressoa em seu “mundo interior”26. Miller dirá que ele é atraído ao vazio do ser. Nesse lugar, ele experimenta associações imprevistas, estranhas, ideias absurdas, pensamentos sem conexão com o mundo externo. Miller dirá assim: “Esses pensamentos têm um caráter bizarro e deixam ver que estão motivados por outra coisa”27, de tal sorte que a sessão analítica induz à experiência de extimidade. Tem algo que ex-siste, de natureza indomável, que toma lugar na paisagem subjetiva sem que o sujeito saiba sua raiz ou mesmo evoque seu controle. É desse lugar ao qual se é atraído, dirá Miller, é dessa clareira que ressoa a “ mensagem do êxtimo”28. Tem algo aí que existe sem ser, uma ex-sistência que faz par com a existência, que se experimenta impossível de dizer, e que está lá, desde o início de uma análise.
Essa atração ao êxtimo força o que há de mais íntimo a se dizer de outra maneira. A dimensão tórica opera aí e conduz o falasser a verificar o que há de original, único e sem igual, que não cede ao universal e à dominação. E nessa fenda aberta ecoa o que ex-siste alhures, impossível de dominar, desde o lugar de mais ninguém. Lacan, em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura da personalidade’”, sublinha que “no princípio o Isso está inorganizado, pois sua relação é com o gozo e não com o significante. É um lugar sem sujeito do inconsciente. O sujeito não está no Isso. […] ali não tem ninguém, […] mas sua ausência se faz desde um lugar: o lugar de mais-ninguém.”29 Ou seja, na mata do gozo, lugar do isso inorganizado, não tem sujeito... mas tem um círculo queimado, uma clareira, onde não tem ninguém. Um furo no gozo... por onde ressoa a mensagem do êxtimo, pois como diz Lacan, “só pode ser de alhures que isso se faz ouvir [...] e é a estrutura desse lugar que exige que o nada esteja no princípio da criação.”30
Miller nos pede para guardar isso com toda sua dificuldade. Isso que ex-siste é impossível de normatizar, de simbolizar, negativizar e, portanto, é por sua extimidade que isso opera, se diz presente! O que não se negativiza é impossível de apreender e é esse traço de indeterminação que torna uma subversão possível. “Digamos que neste lugar de mais-ninguém o designamos como tal na medida em que não vamos meter aí o ser supremo, mas vamos localizar na ausência dele onde, às vezes, o sujeito suposto-saber pode vir se alojar.”31
“Todo mundo é louco, junto a mais alguns outros”
As consequências dessas formulações nos conduzem a uma clínica que se engendra ao real dando forma a um sistema de semblantes – um sistema que tece ficções e articula um laço social a partir do que é próprio a cada um, como cada um se arranja com o êxtimo. A realidade psíquica é um delírio íntimo. As consequências deste enunciado para a prática clínica me parecem um farol quanto à posição analítica na direção do tratamento hoje, pois indica que isso “pode existir e pode não existir”. Um eco do adjetivo “possível” do texto “Tratamento possível da psicose”. O lugar de ninguém como o lugar matriz da criação, ponto de partida para a emergência do falasser e do sinthoma, dá assento à clínica universal do delírio. É a partir desse ponto que Lacan nos entrega sua última bússola, dita e publicada em 10 de outubro de 1978: “todo mundo é louco, quer dizer, delirante.”32
“Perguntam-nos como alguém que foi analisado poderia ainda se imaginar como sendo normal”33, exclama Miller. Em uma análise, em resumo, cada analisante é conduzido ao fundamento de sua loucura mais íntima, ao redondel queimado na mata do gozo, sem tradução possível. “Todo mundo delira” acaba sendo “a única lucidez aberta ao corpo falante para se orientar”34, um modo de fazer com esse quantum constante, esse resto pulsional que procede de UM gozo primário e fazer com o furo no qual se desdobra um efeito de real na ficção do existir. Pois o inconsciente e a pulsão só entram em um acordo através de uma montagem em torno do furo que os abisma. Seu laço não é natural. Talvez seja isto o que Lacan quis dizer com a experiência de uma desordem na junção mais íntima. Para tanto, é preciso o mínimo de um Outro, menos na dimensão significante e mais enquanto um corpo que ressona a coisa desde alhures, tal como podemos ler em Miller, em Extimidad: “o Outro é a coisa, mas a coisa enquanto esvaziada”35. É aí que a experiência analítica se instala onde cada um experimenta sua mais íntima desordem. Ela visa ao detalhe que se empresta à contingente junção do gozo ao Outro, tomando esse nó como o que pode ou não advir no lugar d’isso inorganizado. Aqui, o possível é parceiro da contingência.
Mas, sobretudo, a prática clínica hoje esclarece que a segregação dos corpos, seu confinamento, não é consonante à política do sinthoma. O gozo não é um mito, o corpo falante não é uma ficção e a política do sinthoma se orienta pelo real que ex-siste e se verifica em permanência nos corpos que contam – a desordem de sempre, isso que resiste desde o lugar de mais ninguém e força o falasser a inventar o que quer que seja com esse nada.
Se no instante da questão preliminar a todo tratamento possível da psicose a bússola era ter ou não ter o Nome-do-pai (NDP) como índice de uma partição entre neurose e psicose, ao final de seu ensino Lacan vocifera: le non-dupes errent, pois o norte da bússola não é o NDP e passa a ser uma frase “inorientável”36, dirá Miller, um “todo mundo é louco”, não segregativo. Aqui o universal encontra no Um seu radical singular em tempos de despatologização. É a partir daí que Lacan pode extrair alguma coisa que ele chamou de sinthoma.
Ao concluir o seminário Todo mundo é louco, Miller acentua que, não por acaso, Lacan buscou na obra de Erasmo de Rotterdam a inspiração para enunciar: “Eu, a verdade, falo”, pois o Elogio da loucura começa assim: “É a loucura que está falando”. Há uma verdade que se fala e se passa na palavra. Lacan a registra com o neologismo motérialité: palavra parente do gozo.
Desde o início de seu ensino, Lacan persegue o instante em que a porta se abre, o relâmpago que tudo muda e subverte ao ler o mesmo de uma outra maneira, uma nova amarração. Lacan corta e costura e faz da experiência analítica uma prática topológica orientada ao real, fenda aberta ao indeterminado, com sua potência subversiva. Tem algo aí impossível de dominar que numa análise se realiza, de repente, na “presença do analista”, uma bússola para lidar com o inorientável que o guia rumo ao que se secreta como solução sinthomatica. O analista presente aí testemunha a originalidade do falasser na invenção de uma solução que seja só sua e de mais ninguém.
Penso que a pesquisa do campo freudiano hoje está em contrariar o real engendrado no empuxo a um individualismo radical, a adições, compulsões, autogestão do gozo que curto-circuita o giro da pulsão, dispensando seu arranjo ao Outro. Trata-se de contrariar, com sua ação, o que está na contracapa do Seminário 19, ...ou pior, onde Miller evoca “o pensamento radical do Um-dividualismo moderno”. A psicanálise faz obstáculo ao interpor ao desatino do gozo um outro para situá-lo. Nesse mundo onde o Outro da tecnologia faz par com o individualismo radical, a investigação, pesquisa e aposta da psicanálise está na oferta e instalação da presença do analista, que toma a forma de a, um corpo êxtimo desde onde ressoe a música da língua de cada um e situe seu cabimento na polifonia das vozes de um mundo plural e diverso. É aqui que uma resposta ao mal-estar atual não está no triunfalismo de um pensamento único, pois não há só uma resposta. A aposta no pluralismo é abrir as portas para o convívio com a pluralidade de respostas, a pluralidade dos sintomas.
A aposta da psicanálise é que, ao começar a se analisar, o sujeito encontrará a sua via de autorizar-se de si mesmo, a partir da sua loucura, junto a mais alguns outros. Agregar ao tecido do laço social significantes inéditos que brotam do corpo têxtil do falasser, significantes originais que, por sua novidade, têm o poder de revirar o tecido e subvertê-lo ao ler o mesmo, o que não muda, de outra maneira. Esses significantes novos brotam de um mesmo lugar, sugere Éric Laurent37. Brotam do inconsciente real, “no instante onde […] não há, ali, mais ninguém. É o lugar de ninguém”. Laurent lembra que, para Lacan, “aí está a chave de tudo: é delirante!”38 Desse lugar se inventa um mundo.
Ao chegar aí, Freud se deixou tomar por um significante novo, indomável: a trimetilamina. Ao lhe dar lugar como um encontro que se escreve, fez exalar pelo mundo um impossível de ensinar e chamou esse impossível de psicanálise. Ele fez disso uma obra, um novo laço social, e “só não é delirante porque ele se endereçou a nós”39, como caixa de ressonância a verificar o efeito retorno do sopro de sua loucura junto a mais alguns outros.
Ao começar a se analisar, cada um se dedica a verificar o que d’isso, impossível de dominar, se enlaça em nós. Analista: presente! é o eco que ressoa desse lugar êxtimo, de onde eclode uma aposta de laço nesse mundo onde todo mundo é louco, quer dizer, delirante.
Já estou me repetindo... retenho por aqui o delírio de minhas notas soltas... para conversar.
1 Conferência originalmente proferida em 11 de março de 2023 no ICPOL-SC.
2 Analista Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise (AME, EBP/AMP), Seção Minas Gerais.
3 MILLER, J.-A. Todo el mundo es loco. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 329.
4 Ibidem, p. 326.
5 Ibidem, p. 329.
6 BRISSET, F. O. B. A poética na fenda entre dois. Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, EBP, n. 88, out. 2022.
7 BARROS, R. R. Analista: presente! Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, EBP, n. 87, mar. 2022.
8 GUÉHENNO, J.-M. O individualismo radical, o pluralismo e a dispersão no mundo. Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, EBP, n. 90, p. 18-49, abril-2023.
9 MILLER, J.-A. Entretien: Lacan et la politique. Citès, Paris, PUF, n. 16, p. 2003.
10 GUÉHENNO, 2023, op. cit., p. 21.
11 Ibidem, p. 23.
12 Ibidem, p. 24.
13 Ibidem, p. 24-25.
14 KAUFMANNER, H. Os mortos vivos e a psicanálise: dos zumbis às formas contemporâneas do arrebatamento. 2023. Cf. Tese (Doutorado em Psicanálise) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2023.
15 LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2016, p. 209. (Coleção Opção Lacaniana, 13)
16 LACAN, J. Le séminaire, livre XXIV: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Lição de 10 maio de 1977. Ornicar?, Paris, Navarin, n. 17-18, p. 18, 1979.
17 ASSEF, J. Argumento XI ENAPOL. Disponível em: https://enapol.com/xi/pt/argumento-e-eixos-tematicos/ Acesso em: 26 fev. 2023.
18 LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. (1967) In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 252.
19 LACAN, J. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. (1953-1954) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986. p. 52.
20 LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. (1977) In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 567-569.
21 MILLER, J.-A. Come iniziano le analisi. XI Enapol. Textos de orientação. Trad. Terezinha N. M. Prado. 2023. Disponível em: https://enapol.com/xi/pt/portfolio-items/come-iniziano-le-analisi/?portfolioCats=149. Acesso em: 10 mar. 2023.
22 Ibidem.
23 Ibidem.
24 SELDES, R. O operador da perplexidade. Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, EBP, n. 90, p. 144, abr. 2023.
25 MILLER, 2023, op. cit.
26 MILLER, J.-A. Los usos del lapso. Buenos Aires: Paidós, 2010. p. 242.
27 Ibidem.
28 Ibidem, p. 244.
29 LACAN, J. Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: “Psicanálise e estrutura da personalidade”. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 674.
30 Ibidem, p. 673-674.
31 MILLER, 2013, op. cit., p. 323.
32 Ibidem, p. 315-316.
33 MILLER, J.-A. O ser e o Um. Curso de Orientação Lacaniana. Lição de 2 de março de 2011.
34 MILLER, J.-A. Apresentação do tema do X Congresso da AMP – O inconsciente e o corpo falante. Scilicet: O corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: EBP, 2016. p. 31.
35 MILLER, J.-A. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2017. p. 433.
36 MILLER, 2013, op. cit., p. 318.
37 Cf. Conversation avec Éric Laurent vers le XIIe Congrès de l’AMP sur le Rêve. Disponível em: https://youtu.be/4kNF2v0pvhY.
38 Ibidem.
39 Ibidem.