O caso clínico, o ensino e a formação do analista 1 

                                  Maria Teresa Wendhausen2


Foto: Tatiane Fuggi 

O tema que se apresentou para mim em relação a este cartel está ligado a duas questões.

A primeira delas diz respeito ao projeto de trabalho da diretoria (gestão 2021-2023) do Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina (ICPOL), da qual faço parte. Dele destaco os significantes caso clínico, ensino e formação do analista, ainda que esta última se dê na Escola.

Desde o início nossa proposta foi dar um acento ao caso clínico, através de uma futura criação no Instituto de uma Seção Clínica e de uma Clínica de Atendimento.

A segunda questão, pela qual sou atravessada no momento, diz respeito ao tema de trabalho do seminário de Orientação Lacaniana que o Conselho da EBP-Sul, do qual faço parte, elegeu para o ano de 2022: “há que distinguir entre ensino e ensinar”. 

O caso clínico e a formação do analista 

É possível pensar que trazer o caso clínico, sua construção, a conversação clínica, e várias outras possíveis atividades a partir dele, nos permitirá, dentre outras tantas e importantes funções, introduzir no seio do Instituto a pergunta “o que é um analista?” - pergunta esta que preserva um real, o real em jogo em sua formação: o analista não existe? 

Caso proceda esta pergunta, poderíamos supor que o caso clínico teria um efeito possível de furo na pretensão de formação do analista através do ensino?

Reinoso, na aula inaugural que ministrou no ICPOL, em agosto de 2021, que teve por título “A transferência na construção do caso”, na resposta que deu a nossa colega Fernanda Turbat, a partir da pergunta que ela lhe fez sobre a função do caso clínico no Instituto, nos alerta que “não há caso sem Escola”, e desenvolve: 

Se pode dizer algo acerca da função do instituto, que aponta a formação em psicanálise não sem ter a Escola como parceira, a Escola está ali. Quando o instituto prescinde da Escola é porque está centrado exclusivamente no saber exposto e não inclui o não-todo. Este é um dos impasses que às vezes tem o instituto, se não tem a presença da Escola que vem ali descompletar a formação em psicanálise para introduzir com mais força a função do analista3. 

Também podemos escutar o eco desta direção na fala de Ram Mandil, em sua aula inaugural “O rouxinol de Lacan e a conversação dos analistas”, de março do mesmo ano, quando nos assinala que “a Escola Orienta o Instituto e o Instituto potencializa a Escola”4. 

O ensino e a formação do analista 

No curso “Todo mundo é louco”, Miller coloca que 

(...) separar o discurso analítico e o matema, quer dizer que não se pode preparar operadores do discurso analítico. Aos chamados psicanalistas, não se pode prepará-los com o ensino, só se os prepara com a experiência. Isto é algo já aceito: não formamos psicanalistas com o ensino, senão com a experiência. Para isto, por sua vez faz falta o ensino, porém no nível mais radical que estou detido, há oposição entre ensino e experiência5.

É importante frisar que isto não deixa de estar presente para Lacan, no próprio ensino em seu paradoxo, trazido por ele na pergunta, “como ensinar o que não se ensina?”, assinalando assim um impossível de ensinar. 

Miller, no texto prólogo de Guitrancourt, localiza o núcleo do ensino da psicanálise no testemunho do analista, enquanto este responde à pergunta de saber o que pode transmitir-se ao público de uma experiência essencialmente privada, reservando o ideal de seu ensino, o matema, que deve ser demonstrativo; é para todos – e é aí onde a psicanálise se encontra com a universidade, ao ensino no Instituto.

A partir daí define o que é e o que não é este ensino. “É universitário, é sistemático e gradual, o ministram responsáveis qualificados, se sanciona com certificados e diplomas... Não é algo que habilite para o exercício da psicanálise, pois com Freud um analista tem que ser analisado, com Lacan uma análise não tem outro fim que produzir um analista”6.

Por fim, faz uma última observação a respeito de não ser um paradoxo a mais estrita exigência a se fazer para aquele que se coloca à prova em uma função de ensino sem precedentes, “já que o saber ensinado só encontra sua verdade no inconsciente, ou seja, em um saber do qual não há nada para dizer ‘eu sei’”7. O que se traduz, diz, que só se dispensa um ensino no campo freudiano à condição de sustentá-lo com uma elaboração inédita, por modesta que seja. 

O mesmo autor antes referido, no texto “Lógicas do não-saber em psicanálise”, coloca que se trata “de um saber do qual não sei que estou implicado e que me ultrapassa”8. Dá a definição de Lacan do inconsciente que se segue à sua Proposição: “Algo que se diz, sem que o sujeito saiba o que diz”9.

Podemos considerar que, nesta observação, Miller reserva aí um lugar desde a posição analisante para aquele que ensina no Instituto, posição a partir da qual Lacan se colocava em seu ensino?

Em caso afirmativo, coloco a pergunta: poderíamos pensar que o caso clínico, nos termos aqui propostos – que permitem tomar a Escola como parceira –, e a posição a partir da qual se ensina são diferentes formas, cada uma a seu modo, de transmissão de um impossível e de um saber fazer com ele, que podem preservar no instituto um furo no saber incluído no real próprio à orientação lacaniana?


1 Texto apresentado na conversação Clínica promovida pelo ICPOL-SC em 20 de setembro de 2022. Ele é fruto da pesquisa realizada no cartel Clínica de Atendimento. Parte do que está desenvolvido neste texto encontra-se na Apresentação da revista Varidade n.2 e no texto “O ensino no instituto: um ponto de reflexão”, publicado no mesmo volume. O tema em questão fez parte das minhas pesquisas no exercício da função de diretora do ICPOL-SC (2021-2023).

2 Analista praticante, membro da EBP/AMP Seção Sul e associada ao ICPOL-SC.

3 REINOSO, Alejandro. A transferência na construção do caso. Conferência publicada na Revista Varidade, n. 2, março/2023. Disponível em: https://www.varidade.com.br/index.php/a-transferencia-na-construcao-do-caso

4 MANDIL, Ram. O rouxinol de Lacan e a conversação dos analistas. Conferência publicada na Revista Varidade, n.2, março/2023. Disponível em: https://www.varidade.com.br/index.php/roxinol-de-lacan

5 MILLER, J-A. Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015, p.337. Tradução livre.

6 MILLER, J-A. Prólogo de Guitrancourt. Consultado em 20/9/2022 https://www.redicf.net/prologo-de-guitrancourt

7 MILLER, J-A. Prólogo de Guitrancourt. Consultado em 20/9/2022 https://www.redicf.net/prologo-de-guitrancourt

8 MILLER, “Lógicas do não-saber em psicanálise”, opção n. 61, p.22, nov 2011.

9 LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 2003.

 

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