Melancolias e substância(s) gozante1
Fernanda Turbat2
Leonardo Mendonça e Mauro Agosti3
Foto: Tatiane Fuggi
Palavras-chave: Toxicomania; Corpo; Posição Melancólica.
O texto que segue é uma versão do original apresentado na Conversação entre Núcleos do ICPOL Seção Sul em dezembro de 2022. Oportunidade em que foi trabalhado um caso clínico junto ao Núcleo de Pesquisa sobre Psicose.
Desta forma, com intuito de salvaguardar o sigilo do caso, decidiu-se por uma nova versão para publicação.
Melancolia, mania e uso do tóxico
Para esta conversa entre núcleos tivemos como ponto inicial a melancolia, situando as especificidades da mesma e a função do uso da substância. Colocamos acento sobre a substância como função. Mais do que uma transgressão da lei social ou parental, a droga tem uma função que não é sem relação com o gozo do corpo e com o significante.
De fato, nos últimos tempos, em nossa investigação, percebemos muitos casos em que a droga tem essa mesma função. Um uso da substância ligado a uma posição melancólica e maníaca, que parece vir anestesiar a dor de existir4, onde sujeitos tentam se ligar à vida, através de um objeto, mesmo que seja ele nefasto, ligado à pulsão de morte. Está aí um paradoxo das toxicomanias: se ligam a um objeto para não serem eles mesmos tragados pela pulsão de morte. Acontece que o objeto de predileção, está ele mesmo ligado à pulsão. Se encontram, portanto, na borda, numa posição de dejeto.
Melancolia, desordem do corpo e toxicomania
Perguntamos: seria, em alguns casos, a função da droga fazer grampo entre corpo e objeto, corpo e significante?
Nieves chama a atenção para como na melancolia o corpo é afetado de modo massivo5 e cita Kraeplin e Séglas6 como referência teórica sobre o corpo na melancolia, como um corpo que dói, um corpo que sofre.
Ela propõe considerar toda a série de práticas sobre o corpo, como resposta à cenestesia corporal penosa na melancolia. A autora cita a toxicomania e o alcoolismo como tratamentos, como um recurso frente à falha da constituição narcísica quando esta não se dá em termos de castração. “O sujeito fica ligado com uma pura ausência ou pura perda (...) sutura radical dessa falta em ser”.7
A função da substância
Antônio Beneti distingue a “verdadeira toxicomania” das intoxicações generalizadas próprias de nosso tempo. “É onde o corpo ‘feito’ ao olhar do Outro é o ‘corpo dejeto’, resto que pode causar horror ou fascínio (travestido de humanismo)… a imagem dos corpos aglomerados nas ‘cracolândias’ da vida das grandes cidades brasileiras retrata bem esse aspecto…”8
Nos termos de Lacan, essa toxicomania rompe com o “casamento com o pequeno pipi”9. Nestes casos a ruptura com o gozo fálico é para se ter acesso a um Outro gozo não fálico, um gozo que escapa à dimensão do fantasma10. Quando falamos de verdadeira toxicomania estamos falando daquela onde mesmo o cuidado com o corpo é deixado de lado.
Trabalhamos com a hipótese de que a função do uso da substância pode ser a de defesa da posição melancólica. Lá onde o sujeito se perde, se esvai, se faz dejeto, a droga aparece como uma possibilidade de integrar o que está difuso, ou seja, unificar o corpo no lugar do narcisismo.
Outra hipótese é que a função dos jogos (telas) e substâncias vem no sentido de “grampear” o significante ao corpo. O uso que o toxicômano faz não é sem a presença do Outro, no qual o sujeito o convoca para a cena. Se não é o desejo do Outro, tal qual Lacan formula no início do seu ensino, é em todo caso com a presença do Outro.
Sória11 se refere à imagem da incorporação do pai que Freud traz em Totem e Tabu12 para esclarecer sobre a posição melancólica e maníaca. Ela diz que enquanto na neurose o lugar do pai morto fica vazio, estabelecendo a partir daí o laço social, na psicose, sobretudo na mania e melancolia, trata-se da incorporação do pai.
Enquanto na mania estabelece-se como um momento onipotente de triunfo sobre o pai, na melancolia o sujeito fica detido ao dia seguinte da festa, quando desperta uma culpa retroativa. É o que chamamos de ressaca moral. Em ambos os casos o sujeito fica detido no tempo de incorporação real e não simbólica do pai, sem passar pelo tempo lógico de elaboração.
Esta alusão à incorporação nos é preciosa. Trata-se mesmo da oralidade na melancolia e a solução pela ingestão da substância. Na melancolia e na mania não se trata de suportar a perda do objeto perdido, pois este não é extraído do campo do Outro.
Nesse sentido, como tratar as toxicomanias sem que essa dimensão de incorporação faça obstáculo ao trabalho via transferência?
É necessária uma invenção que leve em conta os três tempos lógicos assim como os três registros propostos por Lacan. Propor ao sujeito um trabalho que articule os registros simbólico, imaginário e real, não o deixando todo “entregue” ao imaginário do corpo.
1 Texto produzido a partir dos trabalhos do Núcleo de Investigação Psicanalítica em Toxicomania e Alcoolismo – NIPTA.
2 Coordenação do NIPTA 2020-2023.
3 Coordenação do NIPTA a partir de 2023.
4 SORIA, N. Duelo, melancolia y manía en la práctica analítica. Serie del Bucle, 2017, p. 80.
5 Ibidem.
6 Nieves (p. 70) cita Kraeplin, E. “La locura maníaco-depressiva” e Séglas, J. “De la melancolia sem delírio”. Ibidem.
7 SORIA, N. Ibid, p. 73.
8 BENETI, A. Entrevista a Antônio Beneti por Elisa Alvarenga. Pharmakon digital, n.2, 2016. In: http://pharmakondigital.com/entrevista-a-antonio-beneti1-2/
9 LACAN. J. Encerramento das Jornadas de Cartéis da Escola Freudiana, 1975. In: http://pharmakondigital.com/encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/
10 LAURENT, E. Três observações sobre a toxicomania. Pharmakon digital, n. 3 , 2017. In: http://pharmakondigital.com/tres-observacoes-sobre-a-toxicomania/
11 SÓRIA, N. Ibid, p. 70
12 FREUD, S. Totem e tabu. In. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 11.