Varidade 3
Loucura e Escrita
Charly Rossi1
Foto: Tatiane Fuggi
Palavras-chave: Letra; Funções da escrita; Escrita do fantasma.
Bem, muito obrigado e boa noite a todos vocês. É um duplo prazer o convite que me foi feito pelo Núcleo de Psicanálise e Literatura para falar sobre “Loucura e Escrita”. Digo duplo porque, junto com alguns colegas do Núcleo, estamos trabalhando em cartel essa questão há algum tempo. Gosto muito desse trabalho porque além de ser um cartel muito produtivo e de estar com colegas do Brasil, entendo que compartilhamos certas preocupações sobre essas questões. E, por outro lado, é um prazer porque o tema da loucura e da escrita, o tema da literatura e da psicanálise, é algo que venho pesquisando há muitos e muitos anos e não entendo muito bem por que me interesso tanto por isso. Então, o convite para mim é quase como um momento de conversa e de desdobramento de todas as minhas hipóteses, que vão mudando, se adaptando, passando e me permitindo pensar sobre esse assunto.
Acho que o tema da escrita e da loucura é um tema central na compreensão do que chamamos de ensino de Lacan. É um interesse de Freud que Lacan retoma. A leitura lacaniana da relação entre a escrita e a loucura, observe que eu não digo literatura e psicose, e dizer escrita e loucura já é uma leitura lacaniana, me leva a propor três eixos para essa conversa. O primeiro é pensar qual o lugar da loucura nesse primeiro momento de Lacan, porque esse é um ponto de chegada no seu ensino. E aqui trata-se da ideia de loucura, não de psicose. Levando em conta que para Lacan, como explica Miller, a personalidade é paranoica e a paranoia é a personalidade, isso quer dizer que, de ponta a ponta, em todo o ensino de Lacan, poderemos localizar a relação entre paranoia e personalidade.
Um segundo eixo que me parece importante para pensar a articulação entre a escrita e a loucura é o interesse de Lacan por outros textos que são os textos místicos. Acho que se deve dar atenção especial ao interesse de Lacan pela mística, bem como ao interesse de Lacan pelos livros dos místicos, pela escrita mística.
Finalmente, o terceiro eixo que considero central é o eixo do testemunho. Me refiro ao testemunho do passe. Em particular, devemos ter em mente que se trata, em todo caso, da versão milleriana do passe. Como vocês sabem, quando Lacan propôs o passe em 1967, ele o propôs como um procedimento no qual aqueles que se apresentavam como tendo terminado sua análise se apresentavam diante de Lacan e se explicavam a Lacan, e esse era o fim do dispositivo. É Miller quem inventa a necessidade de cada um dos AE's escrever algo sobre o que foi sua análise e quem inventa a ideia do testemunho público.
Eu coloco em terceiro lugar, loucura, mística, testemunho, porque entendo que há uma articulação muito fina na ideia de como aquilo que foi um acontecimento na vida de um sujeito se transforma em uma letra. Acho que podemos encontrar a passagem do evento para a letra nesses três eixos: loucura, mística e testemunho.
Quando comecei a pensar nessa conversa de hoje, pensei em pelo menos três autores. O primeiro deles é, sem dúvida, Schreber, que é o texto principal para pensar sobre o que vamos falar hoje. O segundo é John Coltrane, músico americano, precisamente para sugerir que não são apenas os escritores que produzem uma escrita com base em um acontecimento. E o terceiro, é claro, é o meu favorito, James Joyce. Não estaríamos discutindo esse assunto se Lacan tivesse interrompido seu ensino antes do Seminário 23. Porque Lacan, no Seminário 23, dá uma torção muito particular ao modo de pensar a relação entre o que se escreve e o que acontece, entre o vivo e a grafia. Para a psicanálise, a ideia de biografia é uma ideia que deve ser colocada em tensão. O vivo, aquilo que pertence ao vivo, não passa ao grafo sem uma perda. Sim, não há passagem da vida para a escrita sem uma perda e isso é central para essa discussão. Se tivermos que falar sobre uma autobiografia, então dobramos o problema. Sim, pois como alguém poderia autobiografar-se a si mesmo? E eu penso que as memórias estão um pouco nessa série.
O encontro de Freud com a loucura é baseado em um livro. Acho que essa é a chave para pensar em um artigo de Miller chamado A psicose no texto de Lacan2. Já desde o título, Miller vai se colocar a investigar as psicoses no texto, ou seja, onde localizar em um texto ou em um livro o fenômeno da psicose.
Para mim o Seminário 23 é um seminário que se forma da conjunção do Seminário 3, As psicoses, com o Seminário 20, Mais ainda. É uma leitura um pouco louca a minha. Digo isso, porque é no Seminário 3 que Lacan apresenta sua famosa hipótese da forclusão do Nome do Pai e propõe sua primeira escrita para o que acontece na psicose, que é o famoso matema do desejo materno sobre o nome do pai e nome do pai sobre “x”.
É no Seminário 3 e no texto De uma questão preliminar a todo o tratamento possível da psicose, que Lacan vai se dedicar particularmente a Schreber e ao lugar que tem a função da escrita para ele. É muito importante observar que, para Lacan, além da função autobiográfica, sublimatória, é a função suplementar que a escrita pode ter. No Seminário 3, Lacan vai dedicar uma longa investigação a isso.
No Seminário 20 há várias entradas para pensar esse fenômeno, mas fundamentalmente há uma entrada que eu acho que é central e que está no terceiro capítulo, chamado A função do escrito. É importante lembrar que nesta época, anos 1970, Lacan já está muito próximo de Joyce. No Seminário 20, de 1972, ele vai localizar ali a função da escrita, a letra em sua correlação com a função da condensação de gozo. A função da letra é condensar gozo. Isso vai nos levar à ideia de que aquilo que se escreve não se move mais, permanece fixo, e assim se poderia propor que existe um designador que faz com que aquilo do gozo, que em Schreber é bem claro, que se move na libido, permaneça condensado sob uma escrita.
O Seminário 23 é, penso eu, o grande seminário sobre a relação entre a escrita e a loucura, não apenas porque é dedicado a Joyce, mas também por causa das hipóteses de Lacan, e é neste ponto que eu queria chegar, ou seja, a função que a escrita tem em Joyce, e veremos um pouco mais tarde que, quando digo escrita, não me refiro à publicação. Acho que esse é um fato central, que temos de diferenciar entre tornar-se famoso e escrever, são duas questões diferentes. Joyce não foi famoso em sua época. Lacan faz referência à função da escrita em si mesma, ao trabalho da escrita em Joyce para a construção do que localiza como um ego em Joyce, o que produz a reparação entre Real, Simbólico e Imaginário. Então, Lacan não pensa que Joyce está tentando construir um nome famoso, mas está fazendo um trabalho na construção de uma suplência que estabilize RSI.
Quando dizia há pouco que a função que Lacan designa à letra - e quando digo letra estou me referindo à escrita, pensemos letra como escrita, condensação de gozo, fixação de gozo - eu a situo como Lacan a coloca no Seminário 23, como aquilo que amarra RSI. Isso quer dizer que o gozo permanece fixado. Pelo menos durante o tempo da escrita, RSI estão estabilizados. A função da letra, portanto, é estabilizar RSI. E aí tem-se, do meu ponto de vista, uma primeira definição da necessidade desse dispositivo para todos os sujeitos.
Eu digo que é importante localizar em cada um a função da escrita. Nós podemos fazer uma grande diferença entre os textos canônicos dos autores que nós consideramos que tenham tido alguma ligação com a loucura, pode ser Lautréamont, pode ser Alejandra Pizarnik, na Argentina, pode ser Rousseau quando ele escreve seus primeiros textos. A função que a escrita tem é a função da construção desse ego, que poderíamos chamar a ideia da construção de um autor. Quando digo a construção de um autor, quero dizer aquele que escreve, diz, afirma em sua escrita que “eu sou igual a eu”, o que é um verdadeiro delírio.
Dizer que “eu sou igual a eu” é um delírio, mas a escrita tentada por cada um desses sujeitos nos permitirá, se lermos os textos com essa lógica, investigar a diferença entre o que chamamos da função de narrador em um texto, como faz Walter Benjamin, ou seja, qual é a voz que fala em um texto literário, e a função no lugar do autor. Na literatura o autor tem de estar escondido atrás do lugar do narrador, não se deve saber quem é o autor de um texto. Considero que não há nada mais louco do que se considerar o autor de suas próprias declarações. Se há um ponto de loucura, é acreditar que se é o autor de seus próprios enunciados.
Quando Lacan diz que Joyce é um desabonado do inconsciente, o que ele está afirmando é que Joyce acredita que é o autor de seus próprios enunciados. É por isso que ele vai investigar se ele acredita ou não que é um redentor.
O texto de Miller, já citado aqui, é um texto em que ele avança sobre a ideia da escrita. Esse é um dos momentos em que Miller diz "somos todos delirantes", repetindo o enunciado de Lacan. Porque para todo sujeito falante há uma referência vazia na neurose. Nesse texto Miller diz que a ausência é a do pênis materno, ou seja, falamos todos em consequência da ausência do pênis materno. Miller estende isso à escrita em geral e produz sua famosa reviravolta que lhe permite referir-se ao fato de que toda escrita é escrita sobre um vazio, o vazio da não relação sexual. Mas vamos encontrar uma lógica com certa rigidez em determinados tipos de textos, e aqui Miller se refere ao texto de Schreber, ao texto Rousseau etc., em contraponto a outro tipo de construção em textos literários.
Os três autores que propus a vocês são Schreber, Coltrane e Joyce. Vou fazer uma passagem muito breve sobre Coltrane. Para mim, um escultor que encontra uma forma em uma pedra está escrevendo. Um pintor que pinta um quadro a partir de uma experiência está escrevendo, e um músico que escreve uma partitura está escrevendo, porque, da perspectiva de Lacan, não devemos esquecer que entre a imagem e a letra há uma semelhança. Lacan nunca se esquece de que uma letra é uma imagem.
Há três pontos em comum que podemos localizar entre Schreber, Coltrane e Joyce. Em Schreber é claro que o problema da mulher é central. O encontro que tem com o lugar da mulher é um problema e uma solução. Em Joyce, o problema da mulher é um segundo problema central, porque eu poderia dizer que as suas duas obras principais, Ulysses e Finnegans Wake, são problemas com as mulheres. Em Ulysses, o momento em que ele conheceu Nora, em 16 de junho de 1904, e em Finnegans Wake, o momento do desencadeamento de Lucia, sua filha. Então se pode colocar esses dois escritos como as soluções que Joyce encontrou para dois problemas. Há uma lógica entre a forma que constrói Ulysses e Nora, e uma lógica entre a forma que constrói a Finnegans Wake e a esquizofrenia de Lucia.
Em Coltrane há um encontro com outra mulher, um encontro duro, que é com a heroína. Acho que esse é seu ponto de virada. Coltrane passa por um período de recrudescimento de seu vício em heroína e, a partir de uma tentativa de cura, ele tem uma espécie de renascimento místico. E, após esse episódio de dependência de heroína, reescreve o que é chamado de círculo de quintas e encontra relações entre todas as notas musicais do pentagrama e faz um desenho com um ponto central, e esse ponto central eu certamente associaria a essa ideia que tenho de um autor. Ele passa a escrever uma obra cuja musicalidade ele espera que cure doenças, mude o clima, altere e traga paz ao mundo, em outras palavras, Coltrane tem um renascimento a partir dessa escrita que o coloca como uma espécie de redentor. Sim, e não é apenas pela experiência com a heroína, mas também pelo encontro com aquela escrita que ele produziu no círculo de quintas3.
Reli a biografia de Schreber na Argentina e me ocorreu que há várias hipóteses. A primeira é que as memórias de um neuropata são um testemunho, sim, é uma construção. Todo aquele que tem um encontro com um real impossível de dialetizar vai tentar transformar, dar testemunho sobre o que se passa com ele. Agora, quais são os eventos que levam Schreber a construir suas memórias e a produzir um testemunho do que acontece com ele? O primeiro é a famosa nomeação para Presidente do Tribunal, quando se encontra tendo que responder desde um lugar simbólico que ele não tem. Ocorre então um primeiro evento traumático e seu desencadeamento. O segundo evento é a ligação entre Flechsig e Schreber. O local de Flechsig é central no desencadeamento efetivo. Há um momento em que, diante da persistência da insônia, Flechsig entrega um medicamento a Schreber e diz com um tom de certeza: “com esse medicamento você vai conseguir dormir” e a partir daí ele se torna o perseguidor.
Eu os convido a pensar em Flechsig como interlocutor do escrito de Schreber. É um convite para entender que a função do analista junto ao psicótico é ocupar o lugar de secretário do alienado, mas na posição de esvaziamento de gozo, posição oposta a de Flechsig.
Pensando Flechsig como interlocutor, pode-se perceber que as memórias começam como carta endereçada a ele. Schreber quer dar um relato da sua experiência onde localiza o lugar que Flechsig tem. Mas, ao mesmo tempo, podemos pensar que, pelo fato de as memórias terem sido escritas por Schreber, elas foram reconstruídas com base em anotações estenográficas que ele teve durante todo o internamento. E saibam vocês que Flechsig estava empenhado em censurar essas anotações, portanto, era uma espécie de editor selvagem da escrita de Schreber. A tentativa de Schreber em escrever e publicar as memórias tem a ver com a restauração do texto que Flechsig desmantelou e, além disso, é uma possibilidade de dar testemunho daquela conversa entre Flechsig e Schreber. Todo o livro foi pensado um pouco sob esse ponto de vista.
Há um antigo texto de Octave Mannoni que observa a proximidade entre o sobrenome Schreber e o termo Schreiber, que em alemão significa escritor. Parece algo importante a considerar para pensar de onde vinha essa ideia de escrever, para dar conta inclusive de seu próprio nome, mas principalmente para traduzir aquilo que ele não entende do que lhe ditam as vozes. Esse é o segundo ponto que localizo na tentativa de tradução de Schreber. Dizer que Schreber escreve para traduzir o que ele não entende daquilo que as vozes lhe ditam é dizer que há algo que ele percebe como opaco naquilo que as vozes lhe ditam, além da imposição. Em outras palavras, há um impulso em Schreber para produzir o que não é tão difícil para nós produzirmos na neurose, para tentar dar conta do que diz aquilo que ressoa no que se escuta.
É o próprio Schreber que fala da escrita como uma missão da qual ele não pode recuar, porque é uma missão tão indigna quanto inescusável. Ele não pode retroceder frente a isso. A questão de ser obrigado a fazê-lo, o fato de ser compelido a escrever é o ponto que o conecta com Joyce. Joyce não se propõe a escrever. Ele está obrigado a escrever. E quando digo imposto a ele, se não a tarefa de escrever, refiro-me à mão, à caneta, ao papel, ao trabalho de esculpir, de trabalhar sobre o papel, o que produz a tentativa de estabilização. Portanto, o fato de ser uma tarefa inescusável parece-me muito importante para aprendermos sobre a função da relação entre a escrita e a loucura.
Diante da loucura, descobrimos que surge a possibilidade, a ideia do impulso para escrever. É o momento de acompanhar esse movimento, quando alguém que teve uma experiência inefável tenta produzir a escrita.
Eu acho interessante esse fato, que a última palavra que Schreber escreve - se não me engano dia 13 de abril, não me lembro a data, mas um dia antes de ele morrer - é a palavra “inocente”. Escreve a última palavra afirmando que é inocente do que é acusado.
Quando levantei a relação entre loucura, mística e testemunho, foi para localizar o Seminário 20, no qual Lacan apresenta a escrita mística, não tanto a experiência mística. Ele dedica atenção especial à escrita mística porque está tentando localizar o mesmo fenômeno do Seminário 3 e que mais tarde tentará localizar no Seminário 23. O fenômeno da experiência mística no corpo, ou seja, algo do gozo que acontece no corpo e do qual o sujeito, pensa-se em Santa Teresa d'Ávila, não pode dar conta pela via da linguagem.
Santa Teresa d'Ávila, o fenômeno do êxtase místico, ela o chama de transverberação, que é a experiência de ser perfurada pela lança de Deus. Ela diz que sente que isso a leva a pensar que a linguagem não pode dar conta dessa experiência. A linguagem é um aparato ruim de comunicação. E entre o gozo e a linguagem, temos esse problema: se queremos dar conta do gozo por meio da linguagem, descobrimos que a linguagem é impotente para se comunicar, para transmitir o gozo, a tal ponto que Santa Teresa escreve, por sugestão de seus confessores. Em outras palavras, Santa Teresa não escreve espontaneamente, são os confessores que têm a lucidez para pensar que a única maneira de ter essa experiência que Santa Teresa vivia em seu corpo era escrevê-la. Estamos falando do ano 1600, 1700, e já existe aí a ideia de que a escrita pode dar conta de algo que acontece no gozo. Não a linguagem, mas a escrita. E Santa Teresa é convidada a escrever e começa a produzir uma infinidade de papéis, ela fala, escreve, escreve, escreve, escreve.
Ela espera que Deus faça você sentir o que ele a fez sentir para que você possa perceber o que aconteceu. Por mais que ela escreva até o infinito, isso não deixa de não se escrever. A experiência mística, a experiência do gozo, que podemos vincular a uma espécie de desencadeamento, não pode ser capturada pela linguagem. Há algo na escrita que não para mais.
Tenhamos em mente o texto que apareceu há alguns anos de Marie de la Trinité, uma freira que teve uma experiência mística, e as madres superioras perceberam que a experiência que Maria da Trindade tinha excedia um pouco o fenômeno comum da sensação da presença de Deus e a enviaram para se analisar com Lacan.
Lacan a recebeu de um modo especial, a fazia entrar na frente de todos os pacientes, e quando ela terminava suas sessões ele a acompanhava até o metrô de Paris para que voltasse para casa, ou seja, ele lhe deu um tratamento especial. Mas o que Lacan indica a Marie de la Trinité em relação à experiência mística? Que escreva sobre aquilo que lhe passou. O texto que foi publicado é o texto que ela dedica a Lacan, para dar conta do fenômeno místico.
A relação entre a experiência de gozo e a escritura é uma relação que Lacan intui no Seminário 3, desenvolve no Seminário 20 com o gozo místico, fixa no Seminário 23, e a mantém ao longo de seu ensino como a única possibilidade, a escrita, de dar conta de um gozo. É daí que poderíamos falar do lugar da palavra, a diferença entre a palavra falada e a letra.
No percurso da minha pesquisa me deparei com a tese de doutorado de Miquel Bassols, “Llull com Lacan”, orientada por Miller. Posso dizer que esse texto de Bassols me parece uma continuidade do Seminário 23, porque Miquel desenvolve em relação a Ramon Llull o que Lacan desenvolve em relação a Joyce, e Freud em relação a Schreber. Llull foi um poeta catalão, um sujeito psicótico que se desencadeou e que produziu nada mais nada menos do que a língua catalã para restabelecer a ordem do mundo que havia sido desarmada. Sim, ele é conhecido como o pai do catalão. Eu quero extrair dessa tese um conceito que Miquel levanta, o conceito de letrificação, ou seja, a produção de uma letra. O que me chama atenção no que Miquel traz é a enorme quantidade de esquemas que Llull cria, que me permite aproximá-lo de Coltrane. Ele desenvolve máquinas de escritura, artefatos de escritura, para lhe acompanhar no processo de dar conta do que lhe aconteceu. Em resumo, em determinado momento, Llull se viu chamado a entrar em combate contra os árabes que queriam destruir a língua espanhola. Se lançou na luta contra os árabes e, no momento em que está no meio do combate, sozinho, tem um desencadeamento e decide reconstruir a linguagem, nesse procedimento que Miquel propõe chamar de letrificação.
Por que estou falando disso? Porque há vários pontos em comum que eu poderia pensar entre Llull, Joyce e Schreber. Há um ponto nas memórias de Schreber que podem jogar luz a isso que venho assinalando. Diante dos milagres divinos que lhe são impostos, Schreber inventa o que ele chama de contra-milagre de desenhar4. Ele encontra um mecanismo semelhante ao de Llull e ao de Joyce. Sim, porque Joyce escrevia ao lado das páginas, desenhava sinais o tempo todo para identificar os personagens, ou seja, colocava uma voz entre a letra e a imagem. Schreber começa a imaginar desenhos de como seria um corpo feminino e, fundamentalmente, leva-os para o momento da experiência de corpo. Schreber pede um pedaço de giz e desenha sobre o seu próprio corpo nádegas femininas, seios femininos, ou seja, tenta a partir de uma escritura sobre o próprio corpo conter esse acontecimento que é a retirada da libido, o que é conhecido como emasculação, ou seja, é uma tentativa selvagem de produzir algum tipo de escritura sobre seu próprio corpo. Isso lhe permite, nos momentos de maior desestruturação, imaginar esses desenhos, escrever sobre seu próprio corpo, que o corpo não se fragmente, não se desfaça, numa experiência de despedaçamento. Então, vamos encontrar ao longo das memórias de Schreber múltiplos dispositivos de escrita, porque por em palavras não basta, daquilo que Miquel chama de letrificação.
O Seminário 23 é o seminário central para pensar sobre esse fenômeno. Sempre me interessei muito pelo Seminário 3, achava-o fascinante. Sempre me interessei muito pelo Seminário 20. E o Seminário 23 foi o seminário que abriu meus olhos. Mas quanto mais eu avanço na leitura dos seminários de Lacan, mais eu entendo a importância central do Seminário 11. No Seminário 11, Lacan falará de uma infração da cadeia significante. Ele começa a falar sobre a diferença entre a palavra falada e a escritura, para localizar o significante que ele chama de significante solto, pensando o fenômeno do significante solto para uma série de três fenômenos que são a psicossomática, a psicose e a debilidade mental. E digo que isso é importante porque é o protótipo, é o modelo do pensamento de Lacan quando ele pensa no fenômeno da letra solta, da letra sem sentido, da letra que condensa o gozo fora da cadeia. Acho que é muito importante localizar esse momento do Seminário 11 para repensar a maneira como estamos trazendo a memória de Schreber e a função da escrita das suas memórias, a função da escrita mística, a função da escrita para Joyce e a função do testemunho, porque quando Lacan toma o significante solto fora da cadeia, está mostrando que o que representa o sujeito é a letra solta, não a cadeia, porque por meio da cadeia significante não vamos ter mais do que o discurso ao infinito, o que Lacan chama de blá blá blá.
Isso nos permite pensar que nossa abordagem da relação entre a loucura e a escrita não é uma abordagem acadêmica, não é uma abordagem interessada na literatura. Nossa abordagem, como eu entendo a função clínica, e não apenas para a psicose, não apenas para a neurose, é da ideia de que algo se escreveu. Quando em uma análise se recorta um S1, ocorre um procedimento de escrita. Escrever é extrair um outro produto e isolar um elemento da cadeia, isso é escrever.
Pensando desse ponto de vista, as memórias de Schreber são uma espécie de letra solta. A experiência schreberiana tem que ser lida a partir dos parâmetros que Freud introduz, mas também a partir do que Lacan introduz com a ideia de que a função que a escrita tem é a de construção de uma letra solta, uma letra fora do sentido. Quando eu estava falando há pouco sobre a construção de um autor, é que a ideia de Schreber está além do delírio de reconstruir o mundo reestabelecendo um vínculo com Deus, de ser a mulher de Deus. Faz um trabalho para inscrever seu nome no mundo, seu nome para sempre. E de fato, mantém seu lugar na história e segue sendo uma referência para pensar a relação entre escrita e loucura.
Em Coltrane, isso fica muito claro. Coltrane já tinha um nome próprio, mas ele vai um passo além e tenta criar uma espécie de redentor do mundo. E em Joyce, a construção do nome próprio, e a construção de um autor, é o que Lacan diz que seria o desejo próprio de Joyce, a ser nomeado como “o sintoma”. A obra inteira de Joyce é uma obra que não se pode classificar no conjunto da literatura. Por isso se diz que a literatura se relança a partir de Joyce. Não é que se posiciona como mais um autor, mas decide transformar toda a linguagem.
A escrita tem a função de tentar construir uma testemunha, um outro a quem se possa dar um relato da experiência inefável que se tem. Essa escrita tenta montar um corpo, como, por exemplo, no contra-milagre de desenhar de Schreber. Essa escrita tenta produzir um nome próprio que permaneça na história. O enredo é a conformação desse nome faltante, que é o Nome do Pai, a partir da produção de seu nome de autor. Em Joyce posso localizar a mesma coisa. A construção da ideia de que “depois de mim”, e isso é algo próprio de muitos delirantes, “depois de mim se terminou a língua inglesa”, me parece justamente o ponto onde o paralelo com o testemunho do passe termina.
Schreber passa para a história com um nome próprio, o nome do pai que ele não tem. Li outro dia que Schreber tinha uns 11 irmãos, 12 irmãos, dos quais 9 ou 10 se chamavam Daniel. Portanto, algo sobre o nome teve que ser suplementado para encontrar sua própria singularidade. Em Joyce, fica muito claro que há tentativas de construir uma singularidade.
A questão é se o nome que é obtido na análise ocupa o mesmo lugar que o nome que esses dois autores obtêm. Ele tem a mesma função, tem a mesma rigidez? Ocupa o mesmo lugar de designador rígido, como aponta Miller? Na escrita das memórias de Schreber ou na escrita de Joyce ou de outros, pois há muitos autores em que se poderia pensar, minha hipótese é de que não.
Ao final de uma análise se obtém não um sintoma, mas um nome do sintoma, que é uma proposta de cada um dos AE’s que passa pelo dispositivo e que nomeia um período de sua análise. Obviamente um período que tem a ver com o acontecimento inefável que foi o trauma, com o modo como o sujeito fez para dar conta desse acontecimento, e do traumático no momento da produção da travessia do fantasma. O nome que surge daí é uma proposição a ser interpretada. É o outro que lê que tem que dizer se esse nome funciona ou não. Não é o AE que se sente autor de sua própria palavra. Em todo o caso, entendo que o que se espera do AE é a ressonância de sua escrita, não a escrita em si. Cada depoimento, além de ser a experiência singular de cada pessoa que fez o passe, produz uma ressonância singular no público, ou seja, não há depoimento sem a interpretação da Escola. Em outras palavras, não há testemunho sem a interpretação da Escola, pois alguém conta como remontou sua vida a partir da construção de seu próprio nome.
Eric Laurent falando sobre a construção do próprio nome, o nome obtido na análise, diz: “meu nome é encore”5. O nome obtido na análise não transforma o “encore” em autor de suas palavras, em um personagem de um romance, mas é um nome que chama a um complemento. Leonardo Gorostiza propõe como nome para seu sintoma a “calçadeira-sem-medida”, um complemento, ou seja, é o Leonardo, sua palavra e o que ressoa de sua palavra. Não é o mesmo para Schreber ou para Joyce. Temos que fazer essa diferença, se não podemos querer que o AE construa um nome próprio, que o transforme em autor de suas palavras. O AE tem que ser lido em seu testemunho e o testemunho tem que produzir uma certa ressonância no público para que alguém diga: bom, esse AE está desse lado, está falando disso, não é um axioma.
E o que se vai encontrar nos textos que podemos chamar “dos loucos”? Uma tentativa de escrever um postulado lógico à maneira de um axioma, que o estabeleça como autor. E qual seria o axioma por excelência do texto do louco? É eu igual a eu. Ou seja, se escreve para construir um ser.
Todo o Ulysses de Joyce é a construção de um corpo. Quando eu estava falando há pouco sobre o contra-milagre de desenhar, de Schreber, se pode encontrar isso num paralelo com o que Joyce faz entre a escrita de Ulysses e a construção de um corpo suplementar. Na investigação que faz Lacan sobre o corpo que “levanta acampamento”, seu interesse, na dimensão clínica, na escrita de Joyce e na escrita de Schreber é poder localizar o que se tem de fazer no manejo analítico quando o corpo levanta acampamento, ou seja, quando algo do imaginário, nesse caso, se solta do nó, quando RSI se solta.
O que localiza Lacan? Que a escrita produz um corpo em Joyce, por exemplo, no fenômeno do espancamento, onde o corpo se desfez como a pele de uma fruta madura, se reestabiliza na escrita e volta a produzir a reparação do laço.
Esse é o intento lacaniano de leitura sobre a função reparadora da escrita. De que maneira Joyce repara o problema de um corpo que levanta acampamento? De que forma Schreber tenta reparar o contra-milagre de desenhar na publicação de suas memórias, no diálogo vitalício que mantém com Flechsig? Se existe um corpo que levanta acampamento, é o corpo de Schreber. Entre o corpo que levanta acampamento e a frase de Schreber “homens feitos às pressas”, há uma familiaridade à qual se deve prestar atenção.
A ideia de Lacan ao abordar a relação entre escrita e loucura é localizar a função reparadora da escrita, por exemplo, em relação à desestruturação corporal que acontece para os dois autores. Na escrita em si, eu estava dizendo há pouco, não é o fato de se tornar famoso por meio da publicação, mas a tarefa de escrever que permite que esses dois sujeitos produzam algum tipo de estabilização no corpo que se desarma. Eu enfatizo isso, porque me interessa sempre extrair para a clínica onde localizamos essa tarefa de escrever para o tratamento do corpo que se desarma em cada um de nós.
O fenômeno do gozo na neurose é o que desestrutura o equilíbrio corporal, é aquilo que não pode se dar conta em relação ao gozo místico. A escrita do fantasma fundamental, que não é algo que se escreve no papel, mas que vai se produzindo em análise, é um primeiro momento em que algo de gozo se escreve e localiza pelo menos um marco, e um lugar do objeto, a partir de onde se condensa o gozo. A escrita do fantasma fundamental é um primeiro passo para a fixação do gozo, e isso a partir da localização de quais são as condições singulares de cada um na fantasia fundamental. Poder-se-ia dizer que é um primeiro momento em que o gozo se organiza e se dirige a uma espécie de desfiladeiro por onde vai passar, para chegar, talvez, ao momento do sintoma.
Observe que é na lógica do fantasma que se pode localizar a função da escrita para a condensação do gozo. Depois, sobre o dispositivo do passe podemos conversar em outro momento, sobre que função cumpre a escrita de testemunhos, que função cumpre a transmissão de testemunhos, a discussão de testemunhos. Por ora, poderíamos nos contentar em localizar que entre a loucura e a escrita está essa função, que eu assinalo como um suplemento compensatório da dissolução corporal. Na neurose temos o mesmo dispositivo na escrita do fantasma. Portanto, proponho a escrita do fantasma como um dispositivo que permite que o gozo se detenha ou, pelo menos, seja enquadrado.
Transcrição e tradução: Adriana Rodrigues e Juliana Rego Silva.
Revisão: Fernanda Volkerling e Paula Lermen.
1 Charly Rossi é psicanalista membro da EOL/AMP e foi convidado pelo Núcleo de Psicanálise e Literatura para proferir a conferência “Loucura e Escrita”, no dia 03 de novembro de 2022, no Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina (ICPOL/SC). No mesmo período esteve como Mais-Um de um cartel inscrito na EBP Seção Sul, sob o título “Testemunho, ficção e real no final de análise”, com os colegas da coordenação do Núcleo, Eneida Medeiros, Gustavo Ramos e Gresiela Nunes da Rosa.
2 MILLER, Jacques-Alain. A psicose no texto de Lacan. In: Revista CURINGA, n°31. Belo Horizonte: EBP-MG, 2010, p.99-121. Disponível em https://ebp.org.br/mg/wp-content/uploads/2020/06/Curinga-edicao_13.pdf)
3 Imagem disponível em: https://www.vivarte.mus.br/post/conhe%C3%A7a-a-matem%C3%A1tica-da-m%C3%BAsica-proposta-por-john-coltrane
4 Tradução livre [contra-milagro de dibujar].
5 LAURENT. E. Le 'nom de jouissance' et la répétition. In: La cause freudienne, n. 49: L'obscur de la jouissance. 2001. pp. 13-19.