Esboços de uma cosedura de travessias:  cacos diaspóricos, alinhaves psicanalíticos1

Mariana Queiroz2 

 
Foto: Gisele Gazzoni 

 para este país
 eu traria

os documentos que me tornam gente
 os documentos que comprovam: eu existo
 parece bobagem, mas aqui
 eu ainda não tenho esta certeza: existo.

para este país
 eu traria

meu diploma os livros que eu li
 minha caixa de fotografias
 meus aparelhos eletrônicos
 minhas melhores calcinhas

 para este país
 eu traria
 meu corpo

para este país
 eu traria todas essas coisas
 & mais, mas

não me permitiram malas

: o espaço era pequeno demais
 aquele navio poderia afundar
 aquele avião poderia partir-se

com o peso que tem uma vida.

para este país
 eu trouxe

a cor da minha pele
 meu cabelo crespo
 meu idioma materno
 minhas comidas preferidas
 na memória da minha língua

para este país
 eu trouxe

meus orixás
 sobre minha cabeça
 toda minha árvore genealógica
 antepassados, as raízes

para este país
 eu trouxe todas essas coisas
 & mais

: ninguém notou,
 mas minha bagagem pesa tanto.

Lubi Prates3

Palavras-chave: Racismo; Segregação; Psicanálise.

Esse escrito é uma pequena extração dos retalhos que venho cosendo através dos estudos epistêmicos, prática clínica, supervisão e o trabalho entre pares acerca das complexidades que envolvem a questão racial e a psicanálise lacaniana. Que costuras se fazem possíveis diante desse real?

  1. Da travessia Atlântica: Diaspóra é um modo de designar a imigração forçada de africanos escravizados pelo tráfico transatlântico durante os quase 400 anos de escravidão legal no Brasil. Essa travessia faz traço fundante do complexo território brasileiro e dos meandros da constituição do nosso laço social. A formulação, como tom de interrogação, da poeta Lubi Prates, “Eu existo”, é colocada e relançada há mais  de 500 anos no Brasil. Uma pergunta que ecoou no sequestro de cada ser humano que existia e vivia em África e foi arrancada de sua família, sua língua, seu território e do seu próprio corpo. Questão que se refaz viva na iminência da morte, por tiros da Polícia Militar carioca, quando o menino de 14 anos, Marcus Vinícius, enuncia para sua mãe: “O blindado não me enxergou com a roupa da escola?”, ou em 2019, em Florianópolis, na Ilha da Magia, quando o jovem Vitor Santos de 19 anos é assassinado, também pela polícia, no quintal de casa enquanto brincava com uma arma de pressão, e a polícia o alveja “sem perguntar nada”, como descreve a irmã. Assim o racismo anti-negro no Brasil nos deixa uma complexa tarefa: o estatuto de humanidade não está para todos os sujeitos. Como isso atravessa a todos nós, brancos e não brancos? Será que aí não temos pistas importantes sobre os debates acerca das transformações no estatuto do Outro? É possível considerar que o pai que cai com o patriarcado não representa somente a queda de uma orientação por uma supremacia masculina, mas também uma supremacia radicalmente branca e europeia como norteadora do laço social e das ordenações do gozo de cada um? Seria isso, de todo mau?
  2. Em terra brasilis, criou-se, como modo de tratamento às expressões tão extremas do gozo do racismo, um véu de amenização do pior, que foi circunscrito como o mito da democracia racial. A aposta foi no esquecimento, no cinismo e na ludibriação: tentaram transformar a perversão segregatória da colonização em um bonito encontro da diferença, inclusive, supondo aí como um traço da cultura a cordialidade do brasileiro.  Há boatos de que um praticante da psicanálise tem que estar à altura de seu tempo, atento ao que se passa no laço social, pois isso incide sobre o ser falante. Se o racismo é basilar no país, parece que o novo mesmo é poder nomeá-lo. São tempos de destrinchar as minúcias do seu funcionamento como um racismo estrutural. Isso porque a artimanha da democracia racial criou um fenômeno no mínimo curioso, no qual o racismo está na ponta da língua, dentro da arquitetura das casas, na organização social do trabalho, na decisão sobre a vida e a morte, nas dinâmicas de reconhecimento de luto, no acesso (ou dificuldade de) às universidades (e às formações em psicanálise?), sem que ele seja reconhecido, sem que ele pudesse ser nomeado.
  3. Relembrar quem veio antes e abriu caminho: há uma importante pedra angular no encontro do enfrentamento ao racismo com a psicanálise. Aqui falo de Lélia Gonzalez, socióloga negra brasileira que no seu percurso faz uso da psicanálise para pensar as questões raciais e de gênero no Brasil, na década de 1980. Em seu texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, de 1984, ela propõe ler o racismo como uma “sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira”4. Retoma de Miller, em Teoria da Alíngua, o potencial que Freud e Lacan nos transmitem à língua e a linguagem, no qual Miller aponta que “a análise encontra seus bens nas lata de lixo da lógica”5. Para Lélia, os negros no Brasil estão na lata do lixo e ocupam o lugar de infans, ou seja de objeto - aquele que é falado pelo Outro. Assim, ela assume o risco de falar com todas as implicações e oferece sua frase célebre: “Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”6. Esse racismo à brasileira vai ser nomeado por Lélia de racismo por denegação (fazendo alusão ao conceito freudiano). Ela localiza esse modo de funcionamento do racismo principalmente nos países que foram colonizados por Portugal e Espanha e que vão ter, como uma das principais estratégias de aniquilação material e simbólica, o branqueamento pela via da miscigenação.  A produção de um desejo de embranquecer pode se inscrever na vida psíquica dos sujeitos e levar à negação do pertencimento comunitário racial, ao rechaço do próprio corpo e da própria cultura. A psicanalista, psiquiatra e mulher negra Neusa Santos, escreveu o livro “Tornar-se negro”7 no qual, a partir de uma pesquisa acadêmica que se deu pela via da escuta clínica dos impasses subjetivos de sujeitos negros em ascensão social, aponta os efeitos psíquicos naqueles que tomam para si a missão impossível de um ideal de eu branco. A partir desses retalhos me parece pertinente a questão: haveria algo de inédito nas costuras entre psicanálise e a questão racial? Talvez essa infiltração - calculada e construída coletiva e historicamente -  de colocar na mesa a importância e a especificidade das relações raciais nos debates políticos, talvez a urgência do antirracismo diante de uma necropolítica que não cessa de se inscrever, talvez uma perturbação na defesa de uma suposta neutralidade por psicanalistas não-negros, talvez a presença cada vez maior, ainda que pequena - na imensa diferença de corporeidades e percursos - de analistas negros, talvez um tanto do gozo que envolve a paixão pela ignorância, tão presente no racismo brasileiro, esteja enfim cedendo. 
  4. Miller, no seu texto “Racismo e Extimidade”, realiza uma leitura  a partir da produção lacaniana onde situa o racismo como um modo de gozo. No texto ele situa a existência das raças como discurso, ou seja, como o que  posiciona, produz e organiza os laços sociais. Aponta também como o avanço científico não teve efeito em fazer recrudescer o racismo, mesmo com seus axiomas de que “não há raças a nível genético”, mas ao contrário, a ciência ainda se constitui um dos importantes meios de sua reprodução. O racismo na orientação lacaniana por vezes é incorporado na via das elaborações da segregação. Aqui me pululam questões acerca de uma precisão epistêmica que possa nos oferecer subsídios rigorosos e consistentes para ancorarmos nossa escuta clínica. Esse que, a princípio, parece ser um terreno fértil, também nos coloca muitos desafios, visto que a experiência de segregação pela via do real do gozo está para todo sujeito falante. Além disso, pela via do modo de gozo qualquer articulação que atue com marcas de partilhamento de identificação pode ser lida como segregatória. No entanto, me parece importante poder diferenciar, por exemplo, experiências de enlaçamento como o NEN (Núcleo de Estudos Negros, fundado em 1986, em Florianópolis), das inúmeras células nazistas que crescem pelo estado de Santa Catarina. O texto de Miller, por exemplo, aponta os espaços para homossexuais em São Francisco e Los Angeles como “processos de segregação assumidos que crescem a nossos olhos”8. Assim, me saltam perguntas: quais os efeitos de tomar as organizações coletivas com traços identificatórios como segregadoras? Quais os efeitos dessa concepção de segregação quando, enquanto psicanalistas, nos colocamos nos embates que constituem as cidades na sua complexidade, onde, de modo geral as organizações negras atuam como modos de sustentação da vida, de resguardo e zelo de matrizes simbólicas não européias em risco de eliminação pelos avanços do capitalismo e, acima de tudo, de enfrentamento da morte insistente de crianças, jovens, adultos e idosos negros pelas mãos do Estado brasileiro? Como, enquanto praticantes da psicanálise e instituições que assumem como princípio o relançar do discurso psicanalítico à altura do seu tempo histórico, nos posicionamos diante do horror colonial que se faz presente nos presídios, dispositivos de saúde mental, escolas, centros de assistência social e a cada sujeito que se endereça a um psicanalista na clínica?
  5.  Laurent, na esteira de Miller, vai propor, em Racismo 2.0, o racismo como uma rejeição da diferença do gozo do outro, sendo este um fundamento do laço social. “O crime fundador não é o assassinato do pai, mas a vontade de assassinato daquele que encarna o gozo que eu rejeito.”9 Essa perspectiva, por um lado, condensa uma importante leitura sobre o racismo anti-negro no Brasil, e por outro, escorrega também para um generalização perigosa ao importar leituras desterritorializadas. O racismo anti-negro tem seu fundamento nas relações coloniais e vai funcionar de forma diferente do antissemitismo. É no paradigma colonial, na relação do Norte com o Sul do mundo, que se localiza a matriz dos modos de gozo do racismo que mata cotidianamente um jovem negro a cada 23 minutos. Parece-me desbussolado, nos nossos tempos, supor que o racismo mude de objeto tão facilmente, como supõe Laurent. Tanto no Brasil, nos EUA e mesmo na Europa, o racismo anti-negro - por vezes camuflado ou imiscuído na xenofobia - possui um objeto muito fixo para o exercício das violências. Se o racismo como paradigma segue se expandindo, no entanto, o racismo anti-negro não recuou no século XX e nem dá sinais de amenização no século XXI. Geisa Assis, em sua leitura sobre o texto do Laurent, também identifica uma  permanência de objeto, e propõe como hipótese: “o racismo contra o negro no Brasil persiste por: 1) seu semblante mudar à medida que se modificam as formas sociais; e, 2) por estar sustentado por um gozo inassimilável? Poderia ser, esta, uma chave de leitura para as barbáries que presenciamos, as mortes sem fim?”10.
  6. Das aproximações possíveis: um ponto de confluência entre o antissemitismo e o racismo anti-negro me parecem ser as políticas de esquecimento. Considero que podemos emprestar de  Luciola Macedo, quando se debruça sobre o trabalho de primo Levi acerca dos horrores do holocausto, a leitura para pensar aos horrores da colonização e seus efeitos como um trauma coletivo. Para a psicanalista, são de suma importância as políticas de memória e reparação como modos de construir bordas simbólicas para os traumas coletivos como o racismo anti-judeu, um “dever da memória”, mas que pode ser estendido aos processos históricos de violência contra os africanos, indígenas e seus descendentes. Em suas palavras: “Levi acreditava, com Freud, que ao nível da história da humanidade, o que era rechaçado, silenciado, apagado, ou seja, o que não fosse minimamente perlaborado e o que não pudesse ser recordado, certamente se repetiriam com suas marcas indeléveis e seus efeitos nefastos…”11 
  7. A Correio Express da EBP, nº 24, de 29/03/23, traz um marco histórico dentro da Escola. É a primeira edição composta somente por psicanalistas negros fazendo, cada um e umas, suas costuras em torno da questão racial. Se relança a questão se seria possível, factível, pensar que o inconsciente, como um discurso do Outro, estaria imune aos atravessamentos raciais, isso para todos os sujeitos. Destaco nos artigos as elaborações sobre a escuta analítica que viabiliza que um sujeito possa falar do que toma o seu corpo, do que marca e grita ou silencia em sua estória. Como aponta Anícia: “Sim, o divã é um lugar para essa desmontagem de uma imagem alienada, é um dos lugares de tornar-se negra ou tornar-se negro”. Aqui, a posição do analista aparece provocada por estar advertida das peripécias do racismo à brasileira. Um analista advertido, que suporte escutar, se diferenciando do lugar do colonizador, que segundo Daniele Menezes não está disposto à escuta, mas a submeter o outro a seu gozo. Marcus Vieira também costura algo por aí, em seu escrito “Meus dias de branco”, ao mostrar a sutileza na sua escuta ao atender duas pessoas - com um mesmo tom de pele - mas uma marcada pelos efeitos do racismo e outra não. Ali, me pareceu fundamental que o analista estivesse advertido de que “no Brasil, tornar-se negro é uma necessidade, talvez maior que em outros países, já que, aqui, o mito da miscigenação, de uma sociedade hibridizada, apoiado em marcas raciais distintivas menos evidentes, funciona como cortina de fumaça para legitimar uma violência não menos pesada que em outras terras”.12 Sem estar advertido disso, dificilmente poderia fazer operar o descolamento do universal, ou mesmo imaginário do tom de pele. Estar atento ao particular, para poder, enfim, fazer operar o singular, pela via do discurso analítico. Aqui pode ser interessante lançar mão da proposição de Laurent sobre o analista cidadão13, como aquele posicionado na polis, que põe para jogo o discurso analítico no laço social, que sustenta um lugar na disputa política. No Brasil, fazer-se cidadão na sua radicalidade passa por se haver com a complexidade das relações raciais e estar advertido dela, o que possibilita por um lado não obturar a escuta - para, por outro, saber fazer operar uma travessia de cada um.
  8. Da travessia dos sujeitos: Haveria algo de específico nas análises dos sujeitos negros? Qual a especificidade dos atravessamentos raciais em uma análise lacaniana? Estas questões estão em ebulição em alguns espaços que participo. Destaco aqui o Ateliê de Psicanálise e Segregação, do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental - MG, e o Grupo de Investigação para o XI Enapol, que tem se dedicado sobre o eixo “modos de apresentação das consultas atuais: identidades, virtualidades, sintomas e caráter”. Fazer operar o discurso do analista, ou seja, apontar para o singular do gozo de cada um, pode vir a ser um furo na perspectiva homogeneizante do racismo, que postula uma subjetividade única, desde uma posição de dejeto no laço social, a priori degradada para o sujeitos marcados pela racialização. “Eu existo?”. Essa pergunta faz ecos, diante da morte, mas não só. Poder costurar as vias da sua existência ao descolar-se da posição de objeto de gozo do Outro racista e da fixidez de dejeto social programado no laço. Criar estratégias diante do real do racismo, para além do silêncio e da denegação. Ir além do racismo, dos seus ditos e não ditos - abrir para a invenção que amarra cada sujeito à vida, apesar da necropolítica. Dar espaço para a bagagem não vista, mas que conseguiu atravessar o Atlântico, quem sabe diminuir seu peso e  abrir espaço para as recriações das bricolagens diaspóricas. Realizar o convite da enunciação: que costuras cada sujeito realiza diante da interrogação “Eu existo?” 

1 Trabalho elaborado como requisito do Curso Psicanálise de Orientação Lacaniana - ICPOL-SC, com orientação de Adriana Rodrigues (EBP/AMP). Florianópolis, junho de 2023.

2 Analista praticante, psicóloga (UFSC), Mestre na área de Psicologia Social e Cultura (PPGP/UFSC), participante CPOL turma 2021/2024.

3 PRATES, Lubi. Um corpo negro. 2.ed. São Paulo: Nosostros Editorial, 2019.

4 GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. (p.76) In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (org.). Por um feminismo afro latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 75-93

5 Idem, p. 77

6 Idem, p.78

7 SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

8 MILLER, Jacques-Alain. Racismo e Extimidade. Derivas Analíticas: Revista Digital de Psicanálise e Cultura da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção MG, Belo Horizonte, v. 18,  dez. 2022. Disponível em: http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/accordion-a-2/o-entredois-ou-o-espaco-do-sujeito. Acesso em: 10 jun. 2023.

9 LAURENT, Eric. O racismo 2.0. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html. Acesso em: 24 jun. 2023.

10 ASSIS, Geisa. Racismo e Psicanálise. 2018. Disponível em: https://icprj.com.br/blog/2018/07/30/racismo-e-psicanalise/. Acesso em: 20 jun. 2023.

11 MACEDO, L. F. Sobre trauma, poesia e políticas da memória. OPÇÃO LACANIANA

12 VIEIRA, Marcus André. Meus dias de branco. Derivas Analíticas: Revista Digital de Psicanálise e Cultura da Escola Brasileira de Psicanálise - MG, Belo Horizonte, v. 18, dez. 2022.

13 LAURENT, Eric. O analista cidadão. Curinga Psicanálise e Saúde Mental, Escola Brasileira de Psicanálise, v. 13, p. 12-19, 2010.

Receba as novidades de artigos e eventos

Design Escapes

Rua Prof. Ayrton Roberto de Oliveira, 32, Ed. Laguna Corporate Center, Térreo
CEP 88034-050 | Florianópolis/SC. WhatsApp (48) 3365-1361.
Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Links Úteis

  • Nossos parceiros

Cursos

  • Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

© Revista Varidade. Todos os direitos reservados.