Varidade 3
Editorial
Foto: Tatiane Fuggi
No muro, uma escrita que se junta a outra, letras, signos, insígnias, nomes próprios, colagens, marcas de uma e de várias passagens, são capturadas por outro que passa, que enquadra a cena e, no instante de um click, desvela o que lhe capturou. O terceiro número da Revista Varidade foi sendo composto num processo semelhante. A partir das marcas dos vários que passaram pelo Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina nos últimos meses, no enquadre da cena, das narrativas dessas várias passagens, o que se revela é um desejo na relação da psicanálise com a cidade, um desejo de presença do analista na cidade.
“A presença do analista é uma presença que faz par com a urgência, verifica o real, abre passagem ao que é da existência, testemunha e faz reverberar o que do singular se amarra, se instala e participa do sintoma enquanto laço social”, é este o tom da conferência de Fernanda Otoni Brisset, O impossível de dominar e a presença do analista, proferida na ocasião da aula inaugural do ICPOL em março de 2023. Publicada aqui como texto de abertura da seção O que orienta, ela se torna também um convite para o início da montagem e do enquadre que cada um poderá fazer da experiência de leitura da Varidade 3.
A presença em corpo, o ato, o tempo e a contingência em operação numa sessão analítica, são os pontos por onde passa Nohemí Brown, em seu artigo O que é uma sessão analítica? O tempo para ela operar como sessão. Argumenta que é justamente sobre essa dimensão de contingência e ato, aquilo que foge ao cálculo, que incide o desejo de formação do analista.
É também sobre isso que escapa ao cálculo, o que provoca e sustenta a formação do analista, que Jussara Jovita Souza da Rosa trabalha em sua pesquisa Sobre o termo “casuística”, título do seu texto. Provocada por um debate que ocorreu no Instituto, discute a formação do analista e a transmissão da psicanálise, trazendo o enfoque para uma discussão sobre a psicanálise pura e aplicada.
Sobre o tema da psicanálise aplicada, publicamos aqui os textos produzidos em um cartel que se formou, a convite da Diretoria do Instituto, para trabalhar temas fundamentais na construção de um projeto de uma clínica de atendimento voltada para a cidade. O cartel foi constituído por Iordan Gurgel (Mais-Um), nosso colega da Seção Bahia, Adriana Rodrigues, Laureci Nunes, Mariana Zélis e Maria Teresa Wendhausen, que trabalharam respectivamente em torno das questões: Porque uma Clínica de Atendimento no ICPOL?; A teoria dos ciclos; A Primeira Entrevista de Acolhimento; O caso clínico, o ensino e a formação do analista. Escritas que se fazem na via de sustentar um desejo de escutar, sob transferência, o que ecoa na cidade.
Abrimos a segunda seção da Varidade 3, Ensino e Pesquisa, com as conversações clínicas realizadas entre os núcleos do ICPOL, em dezembro de 2022. Sob o título Melancolias e substância(s) gozante, o Núcleo de Investigação Psicanalítica em Toxicomania e Alcoolismo (NIPTA), numa interlocução com um caso clínico de melancolia apresentado pelo Núcleo de Pesquisa sobre Psicose, trabalha, em uma das vertentes, a hipótese de que “a função do uso da substância pode ser a de defesa da posição melancólica. Lá onde o sujeito se perde, se esvai, se faz dejeto, a droga aparece como uma possibilidade de integrar o que está difuso, ou seja, unificar o corpo no lugar do narcisismo”, e a pergunta lançada pelo NIPTA é “como tratar as toxicomanias sem que essa dimensão de incorporação faça obstáculo ao trabalho via transferência?”.
Já a conversação entre o Núcleo de Psicanálise e Cultura e o Núcleo de Pesquisa e Investigação Clínica de Psicanálise com Crianças (Pandorga) teve como um dos resultados a produção do texto O mal-estar da época: a criança e o discurso analítico. A partir de um caso clínico trazido pelo Pandorga, se lançam a pensar a presença do analista tanto na clínica quanto na cultura, em torno da questão sobre como o analista pode operar na cidade e de que modo pensar seu lugar diante do mal-estar da época.
Ainda na mesma seção, Mariana Queiroz, participante do Curso de Psicanálise de Orientação Lacaniana (CPOL), nos convida, nas palavras dela, “a pensar acerca das complexidades que envolvem a questão racial e a psicanálise lacaniana. Que costuras se fazem possíveis diante desse real?”. Argumenta a favor da necessidade de criar estratégias que, diante do “real do racismo”, ultrapassem o “silêncio e a denegação”.
É por esta via também que Flávia Cera trabalha seu texto, A opacidade da escrita, um furo na História, trazendo uma articulação entre psicanálise e poesia, afirmando que, em suas diferenças, ambas têm um lugar de “in-significante”, de um resto, que, em suas palavras: “trazem à cena uma experiência tensa entre opacidade e clareza, entre sentido e não-sentido que permitem um modo de estar na vida que sustenta, suporta, o que não se pode escrever, o lugar do ilegível”.
É sobre a articulação entre psicanálise e escrita, porém sob o enfoque da necessidade de fazer uso do recurso da escrita para sustentar um corpo, que trazemos o trabalho de Charly Rossi, que desde a Argentina, a convite do Núcleo de Psicanálise e Literatura, proferiu sua conferência Loucura e Escrita, que publicamos aqui, abrindo a seção Intercâmbios. Rossi traz Schreber, Joyce, John Coltrane e Ramon Llull para pensar o uso da língua e da escrita “como um suplemento compensatório da dissolução corporal”. Ele afirma que Ramon Llull está para Miquel Bassols, assim como Joyce para Lacan e Schreber para Freud, e ousaremos continuar a frase com: assim como John Coltrane está para Rossi. Deixamos essa provocação com vocês. Leitura imperdível!
No segundo artigo da seção Intercâmbios, Cinthia Busato e Daniela Mayorca, no texto Uma experiência de Conversação: efeitos, derivas e invenções, trazem suas elaborações sobre a participação do ICPOL num projeto de extensão da Universidade Federal de Santa Catarina, criado para oferecer à comunidade universitária um espaço para lidar com os efeitos subjetivos da pandemia, a partir do dispositivo da conversação.
É também a partir da conversação que o Laboratório Protocolo Aberto, do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança - CIEN/SC, orientado pela pergunta o que há de insuportável na criança?, consegue escutar e criar espaço para a elaboração de um ato falho, o SAMÃE, um neologismo produzido por uma mãe, que demarca o constante estado de emergência entre crianças e seus pais, sobretudo nos casos onde está presente o diagnóstico dos transtornos na infância, mais especificamente o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista. A aposta na conversação propõe, segundo as autoras, abrir “pequenas fissuras por onde possa passar o ar que empurra as crianças para um lado e os pais para o outro”.
Foi num olhar atento para uma fissura no meio do concreto, que Gizele Gazzoni foi capturada pela delicadeza e resistência da coquelicot, nas palavras dela “uma florzinha cheia de simbologia, porque é uma flor selvagem, que não se cultiva, é considerada uma flor livre, que brota nos campos. E me impressionou essa contingência de no meio daquele cimento todo encontrar essa flor”. Na Varidade 3 essa foto ganhou a legenda o impossível de dominar e a presença do analista, ilustrando o artigo de Fernanda Otoni Brisset. A imagem faz alusão ao que irrompe, resiste, insiste e faz presença mesmo nas condições mais adversas.
Com um olhar atento a esses modos de inscrição e presença, Tatiane Fuggi desenvolve seu trabalho de pesquisa e fotografia, revelando em imagens o que ecoa na cidade a partir das inscrições, colagens, pinturas, daquilo que se sobrepõe, e pela própria ação do tempo se desfaz, produzindo algum efeito de surpresa e abrindo espaço para uma nova composição, como ela enfatiza.
O sol que atravessa o edifício em construção, emoldurado pelo olhar de Patricia Boeing, ilustra a ideia contida no texto que anuncia a construção do projeto de uma clínica de atendimento no ICPOL. E as imagens capturadas por Fernanda Volkerling nos remetem à dimensão da ausência e do vazio, do espaço expectante que a cidade continuamente abre e fecha.
Além do talento na fotografia, as quatro colegas têm em comum a sua trajetória de formação em psicanálise nos cursos do EBP-Seção Sul e do ICPOL. É um privilégio poder contar com uma contribuição tão delicada nessa edição da Varidade. Obrigada!
Cada um que passou pelo ICPOL nos últimos meses deixou uma marca, um signo, uma letra, algo de si, e disso que ficou foi se compondo a Varidade 3. Agradecemos aos autores, às colegas pelas fotografias, à diretoria do ICPOL pela confiança e autonomia concedida na realização do trabalho, ao Marcos Lima, webdesigner, pela parceria na organização de cada detalhe.
Sempre entre vários, cada um com seu traço particular, seu modo próprio de contribuir, doaram algo de si para tornar esse desafio possível e prazeroso, por isso um agradecimento muito especial a Paula Lermen, Fernanda Volkerling, Juliana Rego Silva e Fred Stapazzoli, equipe editorial, pela parceria leve e generosa na execução deste trabalho.
Fica o convite para que cada leitor faça sua própria montagem no enquadre da cena possível a partir das marcas das várias passagens que vocês encontrarão na Varidade 3. Boa leitura!
Adriana Rodrigues (EBP/AMP)
Coordenadora Editorial