A transferência na construção do caso1
Alejandro Reinoso2
Fred Stapazzoli, sem título, 2022 [Estudo de monotipia pictórica]
Palavras-chave: construção do caso clínico; fantasia e transferência na construção do caso clínico.
O caso clínico tem uma relação fundamental com a direção do tratamento. Inclui uma estratégia, uma tática e uma política. A estratégia é a transferência, da qual vamos falar hoje, a tática é a interpretação, e a política tem a ver com o desejo do analista e a posição do analista. De algum modo a política inclui o caso do analista. Por quê? Porque o desejo do analista tem um componente de base neurótica, quer dizer que é um desejo impuro. O caso, também desde a política, inclui a enunciação do analista, em que não há garantia do ato, onde há sempre algo falido no ato, que nos empurra à supervisão, à própria análise, que faz circular a casuística nos espaços da Escola, que nos permite também incluir o terceiro aí presente que é a Escola, na construção do caso. De maneira tal que poderíamos dizer que em nossa orientação não há caso sem Escola. Bem, o título para hoje articula três significantes: transferência, construção e caso. Vamos começar ao contrário: caso, construção e, finalmente, transferência.
O que é o caso em psicanálise? Eu lhes felicito que, durante esse período, nesse Instituto, estiveram abordando a perspectiva da casuística. Isso coloca no centro o lugar que o caso tem em psicanálise e que a conversação clínica também tem para nossa orientação.
A ciência contemporânea degrada a ideia e a prática do caso único, ainda que lhe seja designada o lugar dos métodos brandos ou cinzas. É contra-atacada e é a contracara das estatísticas e das factualidades. O discurso universitário forclui o sujeito e ao mesmo tempo o desejo do analista. É a favor de outra política, a política das habilidades e das competências, dos skills, ferramentas de conduta, em que os protocolos são desprovidos de qualquer formação.
O gênero chamado narrativo valoriza mais os casos. Mas seguidamente os põe em série com as biografias e as intrigas das chamadas crônicas amarelas ou vermelhas dos criminosos. Mais ou menos essa cor, a cor do caso na criminologia. Freud, em particular, ficou decepcionado porque seus casos eram lidos na Viena da época como romans à clef, em francês, como novelas à chave, quer dizer, casos que despertam particularmente o desejo do leitor. Era um escritor indiscutível, dizia o crítico literário Harold Bloom a respeito de Freud, que recebeu o prêmio Goethe de Humanidades e Letras. A captura que produzia o texto de Freud tornava difícil ler o caso de uma maneira lógica. O historial freudiano, disse Éric Laurent, advém do romantismo alemão, da novela de Goethe. Assim, por exemplo, o Caso Dora se parece de certo modo ao Jovem Werther, com suas paixões, ainda que Dora inclua um modelo novo: o sonho e sua interpretação, com suas incidências no tratamento. A intriga sexual e o sentido oculto dos desejos inconscientes no relato dos casos fez a fama de Freud. Era, como disse Éric Laurent, um gosto da época; o gosto pela intimidade e sua construção, como dizem os historiadores do século XIX, George Dewey e Phillipe Ariès.
Não obstante, os casos freudianos não são uma história familiar, nem uma autobiografia, tampouco uma história da intimidade. Freud faz no historial médico um deslocamento, transformando-o em um historial clínico. Os detalhes sintomáticos, o curso da enfermidade, a etiologia, introduzem a paixão pela causa, a causa de um sentido que possa encaixar. Assim, Freud, ao distanciar-se do historial médico, enoda o sintoma, a etiologia, o terapeuta, a terapêutica e o prognóstico, mas situando, inicialmente, um ponto de impasse, a transferência, especialmente no Caso Dora. Vai esgotar no final do mesmo, e em suas sucessivas releituras, sua miopia e furor interpretativo, ao não poder ler adequadamente esse vetor do tratamento.
De toda maneira, Freud inclui em seus casos um real impossível, pressionado, por outro lado, na época dos historiais, por um empuxo ao sentido, ao final esclarecedor, a uma elucidação mediante interpretação. Freud esteve tentado pelo furor interpretandis, como chave de acesso ao desejo inconsciente, ao sentido dos sintomas. Sem embargo, paulatinamente, foi isolando e diferenciando os fenômenos da transferência em suas duas dimensões: como motor e como obstáculo.
O caso freudiano tem um ponto de articulação em torno do simbólico, nos recorda Lacan, em seu retorno a Freud. Lacan se orienta pela envoltura formal do sintoma na releitura que faz dos casos freudianos, como a lógica da fobia no Pequeno Hans, o labirinto obsessivo no Homem dos Ratos, a figura do quarteto em Dora e na Jovem Homossexual, o esquema R no caso Schreber. Lacan se orienta, em um primeiro momento da direção do tratamento, para elucidar a combinatória inconsciente que está operando. O caso se ordena em torno da noção de desejo, da tensão imaginário-simbólico e da passagem da relação com o semelhante ao Outro.
Sucessivamente, o caso terá como centro a orientação pelo real. É dizer, o caso é articulado em torno do gozo e da repetição. De todo modo, os casos clínicos não apresentam nenhuma perspectiva que se acerque do ideal. Cito Éric Laurent: “a construção do caso gira sempre ao redor do impossível que inscreve um lugar vazio em reserva, o significante do Outro barrado”. Por isso, o caso e a poética estão articulados. Disse Laurent: “a envoltura formal do caso não é separável da sua poética. A palavra designa, ao mesmo tempo, o efeito de criação obtido pela formalização do sintoma, tanto do lado do analisante como do lado do analista”. O caso, portanto, é solidário ao ato analítico e ao que daí procede e emerge, é um dizer que produz amor. Laurent dirá do seguinte modo: “o caso é uma poética que ultrapassa ao analista e ao analisante”.
Paulatinamente, o caso se desliza para incluir e alojar a lógica, e inscrever a contingência à necessidade. Essa contingência é capturada na escritura de um caso, e inscreve um acontecimento de corpo, um encontro que chama à necessidade de formalização do caso. A transmissão dessa captura produz transferência na audiência.
Veremos mais adiante que o caso exemplar, nesse sentido, é o testemunho do passe. É uma clínica, o testemunho do passe, do grande Outro barrado, na qual as respostas do falasser são construções de suplências generalizadas ante o vazio central devido à pluralização dos Nomes-do-Pai. Por isso, nomear um caso supõe sempre uma exigência de bem-dizer, que é um dos nomes da lógica da experiência analítica. Isso orienta o dizer do analisante e sua transferência e também o dizer interpretativo do analista. Esse esforço de poesia indica que o caso é uma demonstração toda vez que, em si mesmo, é homogêneo à forma do chiste. É dizer que o caso também traz o novo. E isso somente está vivo quando há um Outro que dá consentimento a sua construção. Daí a importância da construção do caso e sua transmissão no contexto da Escola. Deste modo, a construção tem um valor em si, enquanto conta com o aval de quem a sustenta. Uma comunidade de analistas. É por isso que o caso empurra à conversação clínica. Proponho dizer desse modo: somente há caso se passa pela comunidade. Freud o fazia em suas reuniões de quarta-feira. Lacan, em suas apresentações de doentes, e em referências nos Escritos e também em seus seminários.
Os casos freudianos estudados no primeiro semestre do CPOL ou as referências que há em diversos livros e artigos de ex-pacientes de Freud ou de pacientes de Lacan também, que foram entrevistados, iluminam essa modalidade de trabalho, mas não dão conta da estrutura mesma do caso. Lacan faz alusões precisas e evanescentes de alguns de seus casos.
Elena, colega da EOL, recompilou a casuística de Lacan presente em distintos registros e constatou casos que Lacan aludiu em distintos escritos3. Ela assinala que as alusões, que são breves e escassas, são um dizer bastante, sem dizer demasiado. Essa é a lógica do caso lacaniano. O traço, a pincelada, a vinheta. Temos também em Lacan uma série de relatos de testemunhos, como por exemplo o de Rosine Lefort, em entrevista com Judith Miller, que alguns consideram como seu passe. Ela conta de sua análise com Lacan e o inédito do ato. Cita, por exemplo, que quando ela fugiu, Lacan foi buscá-la na entrada do metrô de Paris. Ou também quando, em uma de suas múltiplas fugas do consultório de Lacan, ele ameaçou fechar as portas e mandar embora todos os pacientes que estavam na sala de espera. Coisa que Rosine Lefort afirma que ele efetivamente fez, para que ela não se fosse.
A partir daí, pode-se deduzir ou fazer a hipótese não só do desejo inédito de Lacan, mas também do alcance das manobras transferenciais. Poderíamos dizer que aí estão as consequências e os efeitos dos casos vivos que testemunharam aqueles que realizaram encontros com ele.
A construção é uma necessidade do clínico de elucubrar a prática. A definição do clínico inclui a construção. Os sujeitos, de outra parte, constroem seus sintomas com base no discurso da época. Atualmente, o discurso universitário, o discurso da ciência, o discurso capitalista. Também poderíamos dizer do retorno do discurso religioso. Constroem assim o seu próprio caso. Armam uma história, uma novela, com base em identificações e laços com figuras locais, como por exemplo, em relação com seu entorno religioso, com as instituições das quais participam. Os sintomas da época, os sintomas atuais, que não são os sintomas da época de Freud, são o cansaço, a fadiga, a fibromialgia, a angústia generalizada, o medo líquido (como assinala Bauman), os temas de gênero e, é claro, os desafios trans da atualidade. Se por um lado os sujeitos tentam transmitir suas particularidades, o discurso tem um teor universal que os impede de se alojar. Desse modo, os sintomas chegam aos consultórios, como diz Freud, em um estado selvagem, e se domesticam sob transferência, transformam-se em outros sintomas. Aquilo que Freud chamava, no início, de cura por amor.
Esse ponto inicial tem essa marca, a transformação do sintoma da época em sintomas no interior de um caso construído sob transferência. Para Freud, o que não se recorda pode-se construir, mas com um limite, como adverte no texto “Repetir, recordar, elaborar”. Esse limite é a pulsão. Posteriormente, em “Construções em análise”, assinala que o analista é arqueólogo do vivo, que o analista reconstrói a partir de restos. Trata-se de agrupar os restos conservados. Miller vai tomar essa referência para falar da salvação a partir dos dejetos4, como vocês recordam de sua conferência no Brasil há vários anos.
Freud também, em “Construções em análise”5, faz equivaler as construções do analista, ele diz assim, as construções são do analista, - não obstante os pacientes também façam construções, especialmente, assinala Freud, as formações delirantes dos enfermos, - são equivalentes das construções que nós realizamos pelos tratamentos analíticos como tentativa de explicar e restaurar. A noção de construção é um conceito operativo, um instrumento para a casuística, para que algo caia, a propósito da noção latina de caso, como disse Laurent. Casus, que algo caia. Aqui no Chile se diz que caia a terra. Os argentinos, que caiam as fichas. Não sei como se dirá em português essa expressão, esse elemento de precipitação, cristalização, disse Laurent a propósito da teoria dos cristais. Se constitui um cristal. A noção de construção de caso tem essa particularidade, cristaliza vez por vez, não de uma vez por todas. Isso que cai, que precipita, pode ocorrer durante uma sessão de análise, pode ocorrer durante uma supervisão, ou pode ocorrer em torno de um impasse com um analisante. Às vezes, cai a ficha ou cai a terra, ou cristaliza a pista fundamental de um caso, em uma sessão de análise do próprio analista. Definitivamente, para Freud, para a psicanálise, as neuroses e as psicoses são construções.
Teremos, por um lado, um aspecto lacaniano: a construção da fantasia, que está muito articulada com a transferência. A fantasia não se apresenta diretamente, disse Miller, em “Duas dimensões clínicas: sintoma e fantasia”6, e também em seu seminário publicado há poucos anos, um dos primeiros seminários de Miller, “Del sintoma al fantasma y retorno”7. A fantasia se constrói, não se interpreta, diferentemente do sintoma. E como se constrói? Por um lado, por via de fazer aparecer a fantasia, por outro lado, precisando as características de como a fantasia se introduz na transferência, em terceiro, tentando precisar e, também, manobrar com os objetos pulsionais que se desprendem da fantasia fundamental.
A fantasia é um objeto de construção, de redução da monotonia da fantasia fundamental. Segundo as palavras de Lacan, é a passagem da selva das fantasias à fantasia fundamental. Esse é o processo de construção. Sabemos que a fantasia pode se apoderar da cena analítica, mesmo que seja quando está desfalecida e aparece a angústia ou bem quando trata de se ocultar e se fazer inconfessável. Se produz nesse momento um intento de inflamação da transferência. Que se construa, quer dizer que o analista não fica no lugar de objeto, mas sim na interrupção dessa satisfação, que se introduz na sessão para satisfazer-se e fazer introduzir o gozo de contrabando, e também fazer o tampão do desejo do Outro como operador da análise. Sabemos que esse operador é o significante da falta no Outro S (A/).
Portanto, diz Miller, na selva da fantasia vai se limpando, vai se depurando a fantasia fundamental. Essa construção da fantasia, de algum modo, desde o analista, significa ir contra sua satisfação, pois a fantasia se nutre não somente das particularidades dos objetos, mas também do sentido gozado. Portanto, a partir da interpretação fantasmática é necessário ir em uma experiência contra, como assinala Lacan no Seminário XXIII. Quando o sujeito faz uma experiência contra essa interpretação fantasmática emerge o alívio, aparece aquilo que se chama classicamente uma luz de esperança, que dura pouco, porque volta o contragolpe do sentido gozado. É assim e isso não se move.
Por isso a fantasia tem uma dimensão geométrica. É dizer que tem a estrutura de um eterno, daquilo que não muda, de um destino. Por isso a fantasia vai se construindo com as contingências que se produzem sob transferência. A fantasia tenta interpretar tudo a partir de seu sentido, fazendo tradução da mesma cena que insiste. O analista pode introduzir um não a isso de diferentes formas: uma delas é capturar algo que aponta à fuga de sentido, de um gozo mais além do sentido, sublinhando a opacidade de gozo naquilo que não se entende, que, do mesmo modo, vai mais além do sentido do sintoma. Isso é algo intraduzível, somente é legível, se pode ler.
A construção na psicose
O interesse de Lacan por Joyce, a quem dedica um Seminário, aponta localizar aquilo que sustenta um sujeito que não se analisa. Essa é a particularidade de Joyce, não se analisou. Qual é a relevância dessa construção? Por um lado, obviamente, não se orienta pela transferência para construir o caso de Joyce, à diferença do Caso Aimée, caso de sua tese de doutorado, mas se orienta por um laço e por aquilo que enoda. Daí podemos deduzir também, podemos localizar, que a transferência é uma experiência de enodamento. Esse é um dos ensinamentos do caso Joyce, que não se analisou, que não esteve sob transferência, uma das consequências é ler a transferência como um nó. Joyce constrói sua obra, seu Ego e seu nome. Diz assim Lacan no Seminário 23: “Joyce não sabia que ele fazia o sinthoma, quero dizer, que o simulava. Isso era inconsciente para ele. Por isso, ele é um puro artífice, um homem de savoir-fàire, o que é igualmente chamado de um artista”8. Agrega em uma página mais adiante: “Não tinha considerado isso de imediato, foi vindo com o tempo. O texto de Joyce é todo feito como um nó borromeano. O que me impressiona sobretudo é que ele não se deu conta disso, a saber, que não há vestígio em toda sua obra de alguma coisa similar. Mas isso me parece muito mais um signo de autenticidade”9. É dizer, a construção através de sua obra e de seu sinthoma como uma forma de enodamento.
Também encontramos alguns apontamentos sobre a construção em alguns casos clássicos de Lacan, sob transferência, como o Caso Aimée, que citava anteriormente, sobre a paranoia de autopunição10. Nesse caso, Lacan, para construí-lo, seguiu ao pai da epistemologia em psiquiatria, Karl Jaspers, não a Freud. Por outro lado, temos um caso particular: Maria da Trindade, uma religiosa que foi paciente de Lacan durante quatro anos e da qual nos restam alguns registros. Não todos porque, tenho entendido, a partir desse ano e o próximo, Miller liberou para publicação a troca de cartas entre Maria da Trindade e Lacan. A única carta que por enquanto está publicada está dirigida a ela, além do informe que ela escreve a Lacan, que se denomina “Da angústia à paz”, e permite fazer uma leitura acerca do caso. A carta de Lacan é uma pista fundamental sobre as manobras do analista. Quero ler um fragmento, porque isso diz acerca da posição do analista e das manobras da transferência. É uma carta que Lacan vai entregar pessoalmente no lugar onde ela vivia. Diz: “Minha querida irmã, envio uma breve nota que lhe destinava ontem à noite antes de receber sua carta desta manhã. Inclusive me ocupei pessoalmente de lhe levar antes de um jantar que tinha em um congresso. Tentei encontrá-la, creio que anotei mal o endereço. De toda forma, essa carta é para que saiba com que ânimo vou apelar a você”. Cito: “não deixá-la só, no desamparo em que senti que se encontrava em certo momento, de todo perdida. Entenda você, agora, a ação que empreendi para resolver a dificuldade moral em que se encontra. Isso é o que deveria ser objeto de nossas sessões. Quero dizer, o modo que você vai conduzi-las – do modo como ela vai conduzir a sessão, em que vai relacionar as recordações, os sentimentos, inclusive os sonhos que surgirão correlativamente durante as sessões. É isso que ao ler as suas cartas vejo que você não entendeu. Meu objetivo não é lhe ensinar a livrar-se desse vínculo, mas descobrir o que foi feito para que se manifeste a você como algo tão doloroso, permitir-lhe que o satisfaça com toda liberdade. Se foi em torno do exercício desse dever que se desencadearam as faces mais perturbadoras de seu drama é porque aí se puseram em jogo imagens para você desconhecidas. É preciso que confie em mim para sair desse momento. Venha me ver o quanto antes. Estaremos juntos para resolver isso. E, por favor, não conte com uma correspondência mais prolongada, porque isso não seria mais que perda de tempo. Confio, de minha parte, em você, para dizer-lhe até logo. Chama-me por telefone amanhã, às 9h, por exemplo”. Fim do fragmento.
O que nos ensina essa carta? Certamente nos mostra as manobras de Lacan para poder resolver um momento de impasse, um momento de desespero de Maria da Trindade. Vocês podem ler no texto que foi publicado em castelhano com posfácio de Henrique Berenguer. O caso construído a partir dessa carta permite dizer que Lacan aposta no desejo do analista e o põe em ato com manobras inusuais fora do consultório, com palavras precisas, destinadas a reconduzir o trabalho analítico, a fortalecer a transferência de trabalho. Maria da Trindade persistiu quatro anos, por momentos dificilíssimos, também com internações, sustentada pela mão de Lacan.
O que entendemos por construir um caso na época do falasser, do sinthoma? É um desafio, não, o último ensino? Diz Miller que é preciso colocar no centro o corpo na construção do caso. Deslocamos, então, a lógica da envoltura formal e da produção dos significantes em direção ao campo do real. Estamos falando do corpo falante como substância gozante. Esse é o material central da condução do caso. É o corpo, diz Miller, que toma os objetos a, é o corpo de onde se extrai o gozo para o qual trabalha o inconsciente. Miller sublinha que no ultimíssimo ensino é necessário apontar ao inconsciente enxame, aos Uns sozinhos, não articulados. E o analista-sinthoma, uma modalidade da época do falasser, do sinthoma do último ensino, o analista-sinthoma aponta ao saber-fazer, à dimensão de uso e, portanto, ao fora do sentido.
É a época do Outro que não existe, como sublinha Éric Laurent, no texto que vocês estão trabalhando sobre a conversação clínica, não é a época do Outro barrado11. Por qual razão? Porque o que há é o Um mas não há o Outro, não há nada mais. É simplesmente uma questão de existência, pontua Laurent. Isolar os Uns que consolam é trabalho dos analisantes.
No argumento que escrevi ao Enapol sublinhei que o lugar que tem a transferência e o amor é o efeito de produzir o isolamento, a precisão dos Uns sozinhos12. Para isso, qual é a posição conveniente do analista? É necessário que nessa posição o analista siga o trabalho do analisante. A análise do falasser instaura a verdade mentirosa e aquilo que não mente é o gozo, o gozo do corpo. É necessário para a construção do caso que o analista possa seguir e acompanhar – seguir é a nova versão, poderíamos dizer, do secretário do alienado, na época generalizada do sinthoma. Portanto, se trata de um real que escapa de ser escrito e que só pode ser nomeado. Daí que a via das nomeações constitui um eixo central da clínica. É assim que pode existir uma escrita daquilo que existe, e inclusive daquilo que não tem existência.
A construção do caso na supervisão
Duas pinceladas: a construção do caso na supervisão. Digo isso porque parte da construção nesses casos se produz nesse contexto.
A construção na supervisão implica em uma operação de separação do analista de sua subjetividade. E de pôr à prova o impossível tal como deve ser construído em suas condições específicas. De acordo com Laurent, a partir dessa construção podemos encontrar uma saída possível ao impasse do caso. Alguém, como analista, não é parte do caso, mas fica incluído nele pelas bases neuróticas, quer dizer, pelo desejo impuro do analista. E isso se traduz em que o ato analítico tem em si a experiência do lapso do mesmo ato. Não somente, para concluir esse aparte da construção, não somente teremos a construção sob supervisão, também a sessão analítica se constrói sob transferência e se constrói para o analisante e para o analista. Éric Laurent, em um texto que se chama A interpretação ordinária13, afirma que o corte – que estrutura a sessão analítica, a sessão assemântica – separa os S1 dos S2. Na lógica atual, isola os S1. Isso permite que na linha inferior do matema do discurso analítico se pode desarticular o saber dos S1. A consequência fundamental é que a sessão analítica, nesse caso, construída dessa maneira, produz os Uns sozinhos. Vamos agora à transferência.
Transferência
Para Freud, a transferência tinha um nome, fogo. Em “Pontuações sobre o amor de transferência”, para Freud a transferência é uma resistência, é um obstáculo, o paciente não quer saber nada, é um fechamento do inconsciente. Ao mesmo tempo, Freud, nesse mesmo período, assinala que é a presença do analista que vai permitir a intervenção. Ao final de “Repetir, recordar e elaborar''14, diz o seguinte: o manejo da transferência é seu principal recurso para dominar a compulsão à repetição e transformá-la em um motivo para recordar. Poderíamos dizer, com Lacan, que a dimensão simbólica desse aspecto implica o chamado ao Outro que a transferência inclui. Não tudo pode ser recordado, nos diz Freud, pois há restos. Nem tudo resta recoberto pelo significante.
A transferência, no entanto, é um fenômeno automático. Se a transferência se trata de amor, o terrível é que se trata de um amor a qualquer um em posição de analista, diz Miller em um texto que se chama “O gênio da psicanálise”. Acrescenta, “pode se ver quando há uma transferência de paciente, uma remissão de um analisante a outro analista, que indica a suposição, por parte do primeiro analista, de que o fenômeno da transferência pode se produzir com um outro do mesmo modo que com o primeiro analista”. Portanto, a definição mais simples que se pode fazer a este respeito é a definição do Sujeito Suposto Saber como pivô da transferência. Essa é a estrutura da transferência no sentido lacaniano. Enquanto que para os demais, tal como os incluía Freud, os fenômenos são muito mais complexos. São fenômenos de amor, de ódio, de confiança, de desconfiança. Trata-se de todas as maneiras de uma disposição do sujeito a incluir uma suposição.
Na histeria, o significante da transferência é a pergunta. Através da pergunta o sujeito se faz representar ante o saber constituído. Apresentar-se com o significante da pergunta é a maneira que o sujeito se dirige ao saber. Miller assinala, em um texto que se chama em espanhol “Los preguntones”15, que o significante da pergunta é um significante que diz que falta um, que falta um significante, mas, para dizê-lo, a pergunta mesmo já é um significante. Assim que podemos entender o que significa esta expressão utilizada por Lacan uma só vez, que o significante da transferência na histeria é a pergunta. A pergunta sobre se há ou não há pergunta no sintoma, se há pergunta sobre o gozo, sobre o desejo, é um vetor da construção do caso. É isso que levamos frequentemente à supervisão. Há posição de pergunta ou não há posição de pergunta por parte do paciente ou do analisante? No âmbito de nossa época encontramos muitos casos sem perguntas e com demandas precisas de ajuda que são mais arranjos, solicitações de mudanças, pedidos de uso, podemos dizer que é uma posição sem pergunta.
A transferência, de todo modo, aponta, diretamente, no primeiro Lacan, ao Outro. Para entender a transferência, vamos localizar esquematicamente três momentos do ensino de Lacan. Primeiro, é a relação do sujeito com o Outro. Aqui, a transferência, diz Lacan no Seminário A angústia16, é a introdução ao Outro. Transferência é a introdução ao Outro. E nesse período, o caso sempre está construído a partir da noção de estrutura. Afirma Lacan na “Questão preliminar”17: “tudo o que tem a ver com o sujeito depende do que acontece no campo do Outro, seja neurose ou psicose”. Por isso mesmo, uma das perguntas da direção do tratamento, nesse registro, no registro da estratégia, é a seguinte – que também é um elemento que aparece nas supervisões: qual tipo de Outro convém a esse sujeito? Qual tipo de semblante? Quais manobras com os objetos? Qual ressonância, para esse sujeito, é conveniente para o tipo de Outro que este sujeito desdobra da transferência? Isso inclui diretamente a pergunta que Lacan toma como indicação de Carl von Clausewitz, a estratégia. Qual modalidade de Outro nos permite manobrar quando não estamos manobrando? Desde essa pergunta emerge imediatamente aquilo que Maurício Tarrab indicou em várias ocasiões para os analistas. Tarrab nos diz que teremos que nos perguntar, quando não estamos em ato ou quando há um desfalecimento do ato analítico, com que fantasma próprio, do analista, estamos operando? Somente dessa maneira, com essa dupla leitura, a da estratégia e também pelo trabalho que os analistas fazem em suas próprias análises, podemos assumir de maneira clara o fator transferencial.
Miller, em “Clínica sob transferência”18, disse que durante uma análise, a constituição ou construção do sintoma analítico está articulado diretamente com a transferência. Disse assim: “seria um erro se localizar exclusivamente a partir da demanda feita ao analista”. Seria um erro considerar que a demanda analítica é exclusivamente a transferência. A transferência é anterior à demanda de análise. Recordemos com Lacan que no começo da análise está a transferência. Há um momento anterior à entrada em análise. Um momento que Miller assinala que é a pré-interpretação que o sujeito tem de seus sintomas. Essa localização é anterior à suposição da instituição do Sujeito Suposto Saber. Aí, a suposição está articulada ao sintoma em estado selvagem. O sintoma, que inclui o sem sentido, é dizer, o real envolto nele, se enoda ao analista. O encontro com o real do sintoma chama à suposição de saber, é uma consequência lógica. Miller indica que esse é o ponto de partida da sintomatização. Isso é desenvolvido em um texto que se chama “Introdução ao Método Psicanalítico”, em que se produz a linha direta de como se desenvolve os primeiros momentos de uma análise. Diz que o sintoma é a definição que recebe o sujeito mesmo de uma análise, pede instalação do significante da transferência. Repito: a formalização metafórica do sintoma, sua envoltura, supõe o seguinte, o sintoma é a definição que recebe a própria análise, pede a instauração do significante da transferência. Sublinho esse pedido, esse chamado, o sintoma está plenamente constituído ou construído quando a sua formalização se articula ao Sujeito Suposto Saber. E nesse ponto é possível falar em demanda de análise. É nesse ponto em que o analista se adiciona ao sintoma, o analista fica adicionado ao sintoma.
Os sintomas mudam de significação sob transferência, portanto, os sintomas são inseparáveis da transferência. Em outras palavras, teremos o seguinte vetor: os sintomas se deslizam desde o estado selvagem até a construção do sintoma. Por isso diz Miller nesse texto, “Clínica sob transferência”, que a entrada em análise se baseia no golpe acertado à fantasia. Como poderia saber de antemão o analista, já que a própria fantasia, como axioma, não emerge a não ser como uma construção em análise? Aqui, vemos a relação direta entre sintoma e fantasia sob transferência.
Uma segunda leitura da transferência, no ensino de Lacan: a relação do sujeito com o objeto. Miller, seguindo o que coloca Lacan, em uma indicação sobre o objeto a, quer dizer que, se não há extração do objeto a do corpo, este está invadido pelo gozo, como nas psicoses. A extração do objeto a do corpo é o que permite, inclusive nos casos das psicoses, introduzir um alívio a essa invasão de gozo no corpo. Lacan assinala que, de algum modo, é parte da normalidade, que se encontra nos paradigmas do gozo19, o gozo do Seminário 21 é o gozo normal, que é a normalidade em que o sujeito vai buscar o objeto a no campo do Outro. Isso, no caso do sujeito neurótico. O louco, o sujeito psicótico, é livre porque não tem que buscar o objeto a no campo do Outro, é livre do Outro porque não tem que buscar o objeto a nesse lugar. Ele já o tem no bolso. É uma liberdade de que o psicótico padece. Em termos de Miller, se poderia dizer o seguinte: se é livre do Outro porque se padece da tirania do objeto a. É por isso que Lacan assinala que o psicótico sofre porque suas vozes o demonstram. Se o objeto a que o sujeito vai buscar no campo do Outro não aparece no campo do Outro, estamos no terreno da multiplicação dos objetos. Lacan fala disso no “Pequeno discurso aos psiquiatras”20, falando dos objetos a no plural. Qual a passagem que faz Lacan neste pequeno discurso aos psiquiatras? Que existe uma pluralização dos objetos a na cultura e que vamos buscar os objetos a que estão presentes na vida social e não necessariamente no terreno do Outro. E nesse paradigma, para pensar a relação do sujeito com o objeto a e ler a transferência, teremos o Seminário 821, o seminário sobre a transferência, onde o objeto está articulado ao amor de transferência.
Vou falar um pouco mais disso adiante quando trataremos de alguns pontos sobre o amor. É aí onde começa a ocupar o lugar crucial o objeto, se vai buscar no Outro um objeto que incendeia, um objeto de irrupção, como Lacan sublinha, que é a irrupção de Alcibíades em “O Banquete”, onde o analista ocupa o lugar de agalma. Esse lugar precioso, esse tesouro. No Seminário 2122, diz que esse objeto causa vai permitir separar o ideal do objeto e que vai ser a posição conveniente que se interroga em cada uma das construções de nossos casos. Ali onde o desejo do analista permitir que apareça a diferença absoluta. Se não for assim, se não se intervém nesse nível, a construção pode nos permitir reorientar o tratamento.
Portanto, aqui, nesse paradigma, o nó está no objeto causa e nos objetos que se alojam ali onde emerge a função de agente no discurso do analista. O objeto a no lugar do agente. Marie-Helène Brousse diz que é ali onde se alojam os objetos a dos pacientes que analisamos.
Retomando o texto “Clínica sob transferência”, Miller sublinha que a precipitação do sintoma é o contraponto temporal e lógico da travessia da fantasia. A respeito da transferência e da fantasia, sublinha o seguinte: o saber suposto do sentido da fantasia serve de tela ao objeto da fantasia, cujo lugar, ao mesmo tempo, prepara. O segundo aspecto importantíssimo para a construção do caso, o saber suposto do sentido da fantasia, quer dizer, a pré-interpretação prévia do sintoma, permite ocultar ou recobrir o objeto da fantasia, que todavia não aparece no momento preliminar, diz Miller, se está preparando o seu lugar. Por isso mesmo sublinha que nesses momentos preliminares aparecem fenômenos de franja, sintomas transitórios que acompanham a acomodação do sintoma.
Terceiro paradigma: a parceria entre falasser e corpo
Recordemos que Miller disse que analisar o falasser já não é o mesmo que analisar o inconsciente no sentido de Freud, nem mesmo o inconsciente estruturado como linguagem. Diria, Miller, “inclusive apostemos que analisar o falasser é o que já fazemos e que nos falta saber dizê-lo”23. É nisso que estamos nos últimos anos.
No último ensino Lacan muda a noção de sujeito e inconsciente pela noção de falasser, onde os Uns totalmente sozinhos insistem e gozam de forma absolutamente isolada. Aqui, a política do sintoma tem uma variante. Sabemos que a política da psicanálise é uma política do sintoma, poderíamos pensar que na atualidade a política é a política do sinthoma? Éric Laurent responde parte dessa pergunta em sua conferência sobre a época do falasser, a conferência de seu doutorado honoris causa na Argentina24. Quer dizer que nessa política se trata na construção dos casos de detectar os enodamentos, as consistências e os ecos do dizer no corpo, na versão do Seminário 2325 sobre a pulsão, para ler e construir os casos.
Em relação ao Um sozinho, que se pode fazer sob transferência, se não faz laços? Que seria, disse Laurent, o Outro, o grande Outro do Um? Qual é o parceiro desse Um sozinho sob transferência? Que relação há entre o Um do gozo e o amor? Miller disse que uma pista que ele considera crucial e que encontramos nas notas passo a passo do Seminário 23 é que o corpo como conjunto vazio, como vazio de significação, que o corpo poderia fazer-se parceiro desse Um sob transferência. Daí a importância de incluir nos casos, na construção dos casos, as manobras com o corpo do analista.
Na clínica do significante, o primeiro paradigma, se trata de isolar os significantes do analisante, aí não está presente o corpo do analista. No seminário “O últimíssimo”, Miller sublinha que a transferência é o grande ausente do último ensino. Retoma aí a noção crítica de Lacan de transferência positiva e negativa, que está presente no Seminário 2426, na lição de maio de 1977. Diz o seguinte Lacan: “a transferência que se chama, não sei por que, negativa, e nem sempre se sabe o que é a transferência positiva. Eu tratei de defini-la sob o nome de Sujeito Suposto Saber. O que é o suposto saber? É o analista. Isso é uma atribuição, como indica a palavra suposto”. Uma atribuição, conclui, não é mais que uma palavra.
Laurent, no texto que está na conversação clínica27, diz que há um elemento crítico, onde Lacan introduz uma crítica à noção de Sujeito Suposto Saber. Qual é a função do analista no ultimíssimo ensino? Tomo uma frase do Seminário 24: “o analista faz verdadeiro o tropeço, o equívoco, faz Um-equívoco”. No seminário 19, disse antes, que o Um pode ser alcançado por Um-dizer. Isso, disse Laurent, é de algum modo a generalização da função de secretário, mais além da função de testemunha e apoio. O fazer verdadeiro, o fazer Um-equívoco é um toque libidinal que o analista situa como algo do novo nessa versão do inconsciente-tropeço, o Unbewusste, que quer dizer inconsciente em alemão. E nesse contexto, Laurent sublinha a noção do Outro que não existe, que já não é o Outro barrado. Diz: “dado que temos um corpo falante que equivoca, que tropeça, que se embrulha, então, há uma ruptura do analista com sua ancoragem na suposição”. Isso me parece um ponto crucial que teremos que conversar em nosso Enapol sobre a transferência. O analista já não está no lugar de Sujeito Suposto Saber, está mais no lugar daquele que segue - suis, em francês, je suis, il suit - aquele que segue. Por isso Miller sublinha em um texto, uma conferência na Espanha, “chegado o momento, o analista se verá investido do traje de luzes do Sujeito Suposto Saber. Mas isso não é mais que um disfarce, porque, como poderia conhecer com anterioridade a causa do mal desse sujeito particular? ”.
Seguir é uma palavra chave em Lacan e aparece com clareza em “Nota Italiana”28. Nessa Nota, Lacan sublinha dirigindo-se aos italianos – não estamos falando da transferência analisante-analista, mas da transferência dos membros de uma Escola com Lacan. Sistematicamente convida aos analistas que sigam a Lacan, sigam-me, os que não me seguem seria bom que me seguissem etc. Há várias referências que podemos encontrar na “Nota Italiana”. Seguir não é, por acaso, uma forma de amor?
O amor e a transferência na construção do caso.
A transferência está no início, no começo está o amor também. No Seminário sobre a transferência, Lacan assinala que o amor está diretamente relacionado com a pergunta dirigida ao Outro acerca do que pode dar-nos e do que tem que nos responder. Não é que o amor seja idêntico a cada uma das demandas com as quais o acossamos, mas situa-se mais além dessa demanda, na medida que não pode nos responder como última presença.
Lacan, nesse ponto, disse que o amor, em particular, vai mais além da demanda de amor, e esse amor está articulado ao objeto. Vai agregar o seguinte: “há um mandato do deus amor, é um mandato espantoso” disse Lacan, de algum modo todos conhecemos algo desse amor espantoso. “Esse mandato é fazer do objeto que ele nos designe algo, que em primeiro lugar é um objeto. Um objeto ante o qual desfalecemos, vacilamos e desaparecemos como sujeitos. Sob transferência o sujeito fabrica, constrói algo e por isso é necessário que a função da transferência e essa dimensão espantosa reste articulada à construção de ficções em análise. É dizer que a transferência pode alojar esse amor espantoso do objeto que nos desgarra. Sobre isso escutamos nas análises, onde escutamos o registro da queixa que, às vezes, está articulada ao sintoma em estado selvagem, e tentamos buscar e precisar se há signos de transferência ao analista. Freud se lamentava no caso de Dora de que não soube ler bem os primeiros signos de transferência. Por isso mesmo é crucial, em uma supervisão ou na construção de um caso ou em uma apresentação, separar demanda de análise, de amor, mas também separar pedido de ajuda da demanda analítica. O pedido de ajuda ou a demanda de ajuda nos permite localizar que estamos na presença de um paciente, enquanto a demanda analítica nos situa já no contexto de uma análise.
Por isso que seguidamente nos perguntamos, na construção dos casos, se há caso ou não há caso. Não sei se em português tem o mesmo impacto que em castelhano: não há caso! Isso quer dizer que não há nada, que não se pode fazer nada! Por isso há caso quando há sintoma, daí a dificuldade de construir um caso quando não temos um sintoma, quando não há ninguém que responda à política do sintoma.
Construção do caso clínico nas instituições
Pensava em falar sobre a construção do caso nas instituições, quando nas instituições não temos a possibilidade de guiar a leitura pela política do sintoma, quer dizer, quando não há sintoma para o grande Outro, como ocorre seguidamente nesses casos institucionais, como muitos casos de entrada ou de pedido de ajuda do tipo infanto-juvenil. De todo modo, a transferência em uma análise que dura – para guardar a diferença que Miller aponta em “Sutilezas analíticas”, entre as análises que iniciam, as análises que duram, as análises que terminam – está articulada diretamente a esse componente libidinal que está mais além do amor.
Qual é a particularidade da construção de um caso nas instituições? Para nós que trabalhamos nas instituições é crucial captar, delimitar, situar os laços transferenciais vigentes, assim como também apontar para a construção de laços transferenciais das equipes, assim como das pessoas que trabalham na gestão e administração. A instituição é uma instituição da transferência, disse Miquel Bassols. A instituição do discurso do mestre, a que rege os procedimentos, as formas, os pagamentos, eventualmente, não dão conta do laço transferencial. Isso mesmo poderíamos dizer que ocorre na universidade, que estão regidas por outro mestre, mas onde a instituição da transferência é perturbada pelas demandas dos estudantes a certos professores, gerando perturbações naqueles que produzem menos efeitos transferenciais.
Para a construção dos casos nas instituições há algumas coordenadas que são fundamentais, como a construção da transferência de trabalho, falar a língua do outro, são tópicos cruciais da FAPOL29, quer dizer: não falar em lacanês, mas falar a língua da instituição, porque de outro modo nos fazemos expulsar ou vivemos uma experiência de trincheira. É necessário precisar os ideais institucionais, as demandas da instituição, os sintomas da instituição e as lógicas grupais. Para construir os casos é conveniente localizar esses pontos para saber, por exemplo, se necessitamos fazer uma construção de uma instituição invisível, como disse Alexander Stevens, colega que trabalha na Euro Federação. Disse Stevens que as instituições invisíveis estão direcionadas ao laço de trabalho com as equipes, especialmente isso se verifica na prática entre vários, modalidade que opera fundamentalmente em instituições que estão regidas pelo discurso analítico. Ou se se trata de instituições não analíticas, de levar algo da instituição invisível, da instituição da transferência à instituição, e da prática entre vários para que no caso construído, que às vezes tem múltiplos agentes, assistente social, fonoaudiólogos, psiquiatras, pedagogos, médicos etc. possam construir e localizar de quem é a demanda, de quem é o problema, em definitivo, como falamos antes, se há caso ou não há caso.
Em muitas instituições, os analistas não são ninguém para o consultante, é um qualquer, um qualquer que necessita se colocar no lugar de alguém. Esse ser alguém não é baseado em uma insígnia, em um título, senão em um fazer, produzir transferência. Um desafio crucial que não mencionei antes, mas o retomo a partir desse ponto, é a relevância que tem a transferência imaginária, como primeiro ponto de entrada, o componente de sugestão, que no primeiro ensino tanto Freud quanto Lacan que criticam, mas que ao final de seu ensino Lacan volta a retomar, se não há algo na transferência generalizada que tem esse aspecto de sugestão. Se trata não de esperar isso, mas de produzi-lo, a produção dessa dimensão de transferência dessa ordem. Recordemos que o cartel, para aqueles que conhecem a dinâmica do cartel, dessa célula base da Escola, está baseado no discurso histérico, como disse Miller30. É a provocação, é o chamado ao trabalho. Essa provocação é crucial à entrada de muitos casos que vêm sem demanda e sem pedido de ajuda. É uma aposta para ver se esse caso se pode construir ou não, ou bem detectar se esses casos são pseudo-casos que têm mais sentido para as instituições, mas que do ponto de vista analítico não produzem nenhum efeito.
O dispositivo do passe e a construção do caso singular
O dispositivo do passe produz efeitos transferenciais. Um caso que recebe uma demanda após ter decaído e desconsistido o Outro. No dispositivo, o Secretário do Cartel escuta, recebe e dirige o Cartel do Passe que escuta, por sua vez, aos passadores que entrevistaram o passante. É um caso que passa como uma carta de mão em mão, de orelha em orelha até que, ao final, a mesma comunidade analítica escuta o testemunho. Portanto, o passante, no dispositivo do passe, dá conta oralmente de seu caso e é entrevistado. Como AE nominado, o AE constrói o seu caso, sobretudo seu primeiro testemunho. Convido vocês a ler os primeiros testemunhos de passe, que são a primeira construção escrita. De algum modo, o testemunho tem uma estrutura, é simples, não conta tudo, não é uma autobiografia, está animada pelo desejo de transmissão e nominação que a Escola lhe confere. É um valor de transmissão do final de análise, da queda do inconsciente transferencial, deixando às claras as letras que foram escritas através das contingências. A posição, como disse Miller, de já não há ninguém, que é a posição do analista, implica que o testemunho já não é pessoal, é parte da comunidade. Posso dizer pessoalmente, meus testemunhos já não me pertencem. É uma ficção, uma verdade mentirosa que dá conta do real, ao mesmo tempo, os testemunhos dão conta de um ganho transferencial. Disse Laurent, é o que Lacan reteve para a experiência do passe, onde cada um conta seu caso de final de análise. Esse caso testemunhado tem a estrutura do chiste. O dispositivo vai radicalizar a enunciação de cada um, a singularidade. Ao mesmo tempo, o AE é uma figura transferencial, disse um colega catalão. Pode tocar o sintoma de alguns após escutar um testemunho. Algumas pessoas depois de escutar um testemunho começam uma análise ou vão à supervisão. Em definitivo, o corpo falante do sujeito que escuta o testemunho pode ser tocado.
No seminário “O desencantamento da psicanálise”, de 2001-200231, Miller se pergunta o seguinte: se o verdadeiro caso não seria o do AE, o qual desloca de forma decisiva o estatuto do saber do analista. Por qual razão? Porque o analista não sabe, pela simples razão de que está em posição de a minúsculo, como agente a título da causa do desejo.
Marie-Hélène Brousse assinala, em uma conversa com Miller nesse mesmo seminário, que não está publicado ainda, que o relato de um caso mobiliza os pontos vivos que geram uma relação com a psicanálise, de maneira tal que um bom relato de um caso é sempre uma carta em suspenso, uma letra em espera. Essa transmissão está maximizada e potencializada na construção do caso dos AEs.
Fico por aqui.
Transcrição e tradução: Paula Lermen e Fred Stapazolli
Revisão: Adriana Rodrigues e Paula Lermen
1. Aula inaugural proferida no ICPOL-SC em 07 de agosto de 2021. Tradução e transcrição revisada e aprovada pelo autor.
2. Analista praticante na cidade de Santiago/Chile, Membro da Nueva Escuela Lacaniana (NEL) e da Scuola Lacaniana di Psicoanalisi del Campo Freudiano (SLP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP).
3. YEYATI, Elena Levy (org). A casuística de Lacan. Buenos Aires: Grama, 2013.
4. MILLER, Jacques-Alain. A salvação pelos dejetos. In: MILLER, J.A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
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27. LAURENT, Éric. Tratamiento psicoanalítico de la psicoses e igualdad de las consistencias. In: La conversación clínica. MILLER, Jacques-Alain; BRIOLE, Guy (orgs). Buenos Aires: Grama, 2020.
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31. MILLER, Jacques Alain. (2001-2002). Le desenchantement de la psychanlyse. Curso ministrado no âmbito do Departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII. Inédito.