A opacidade da escrita, um furo na História 

Flávia Cêra1


Foto: Fernanda Volkerling

Palavras-chave: História; Opacidade; Reminiscência.

Minha proposta aqui é dar continuidade2 ao trabalho de pensar a opacidade e a escrita a partir do uso ou da prática da língua que faz a psicanálise e a poesia em seu ponto de ruptura com a representação que aponta para uma abertura.

Freud dizia que o poeta/artista precede o analista porque anuncia um saber sobre o mundo que só depois vai se ver que era um saber não sabido. Precede enquanto saber tocando o impossível e, consequentemente, reorganizando o campo dos possíveis. Então, pergunto, o que se escreve e o que não se escreve? Entre psicanálise e literatura qual é a conversa possível? Certamente não é de equivalência, de continuidade. Para falar com Lacan em Lituraterra3, seria, antes, como um litoral, como lugares heterogêneos que se bordeiam e que se encontram intimamente sem se confundir. Que tem como eixo comum o trabalho com a linguagem, com a língua que ambas articulam para além do entretenimento ou da terapêutica - embora possam eventualmente ter essas funções. Aqui, me interessa o ponto de intromissão na ordem do mundo com seus elementos que, de certo modo, estão sempre à margem, que dão notícias de outras possibilidades de vida, de outras formas de habitar a língua, o corpo, a memória, o impensável.

Isso sem deixar de considerar a modéstia dos efeitos do discurso analítico e seu discreto lugar subversivo. Ou ainda poderia estender a proposta de Christian Pringent para a poesia à psicanálise, a saber, que ela é e trabalha com o in-significante4. A poesia e a psicanálise têm um lugar de in-significante, lugar de suporte de uma língua. Ambas guardam seu lugar de resto porque prezam pelo resto. Ambas trazem à cena uma experiência tensa entre opacidade e clareza, entre sentido e não-sentido que permitem um modo de estar na vida que sustenta, suporta, o que não se pode escrever, o lugar do ilegível. Ou seja, suporta a inexistência da relação sexual, o impossível da equivalência que nos remete tanto a uma relação com o todo e à inexistência d'A mulher (que poderia igualmente ser lida a partir do in-significante) quanto a uma espécie de origem que, uma vez escrita, viria esclarecer o sem-sentido que perturba.

Pringent começa seu texto Para que poetas ainda? com uma análise que divide o mundo em duas vertentes. Sua leitura parte de uma radical ausência de sentido no mundo que tem como respostas, por um lado, a ciência positiva e, por outro, a religião. Uma busca pela objetividade e pela garantia. Ou, poderíamos dizer, duas formas de tentar escrever a relação sexual que pelo sentido e saber determinados de antemão oferecem um lugar, um certo consolo para o sem-sentido da vida. Que lugar, então, para um saber pouco estabelecido e que não traz nenhuma clareza apaziguadora? Bom, ei-nos aí também, a psicanálise ao lado da poesia e ambas diante da "angústia da língua", às voltas com as questões perturbadoras sem, no entanto, podê-las responder universalmente, mas sim, eticamente. O que tampouco quer dizer que só se pode responder no caso a caso. Não é bem isso que quero dizer. É mais sobre uma prática da língua ou uma prática da letra que toma para si a ilegibilidade como uma experiência e um trabalho, que diante da opacidade da vida e do mundo, pode usar a língua como uma forma de furar a ordem do mundo. Não é um truque, nem apenas decifração, nem tampouco um exercício hermético de interpretação, menos ainda a constatação de um estado imutável das coisas, mas a aposta de que a cada encontro com as determinações que impelem a um fechamento do mundo, geralmente, com soluções totalitárias, é possível aí, esgarçá-lo introduzindo um resto, um vazio. Pois bem, no sem-sentido do mundo, espera-se de qualquer coisa e não menos da literatura e da psicanálise, uma cura para a vertigem, uma organização do insuportável do real.

Essas análises são sempre difíceis, pelo menos para mim, porque soam um tanto quanto fora do mundo, sobretudo, quando nos deparamos com os abismos das desigualdades raciais, sociais, de gênero em um país como o nosso. Como pensar a in-significância sem perder de vista a realidade inequívoca da fome? É possível? Arriscaria dizer que, mais do que possível, é necessário. Então, como pensar a partir daí a função de escrever poesia? E poderíamos ampliar: para que, ainda, a psicanálise? E com Pringent: "por que existe, ainda assim, isso, isso em vez de nada (em vez de tão somente toda tralha que ocupa as butiques e palcos mediáticos)?"5

Pensaria em um sentido muito amplo, como esse suporte, como uma espécie de aviso de incêndio que aponta ao não-sentido ou ainda ao furo do saber ao mesmo tempo que é capaz de constituir um sentido, um meio de dizer a própria história. Em outro texto6, apresentei um conto do Itamar Vieira Junior cujo título é Na vastidão do céu, a noite7. Nele, Itamar conta a história de Rita, uma mulher negra, professora universitária, que pesquisa os buracos negros. A história de Rita é contada nos fragmentos da história da sua tataravó Bárbara, que fora escravizada e teve sua história mantida em um quase segredo na família por conta do seu sem-sentido. Rita, de alguma maneira, escreve a história de Bárbara, a retira do seu sem-sentido que facilmente se lia como uma sorte de loucura a ser abolida, segregada. Aqui a escrita tem uma dupla função, é a escrita de uma vida cujo destino se toma como determinado e que encontra outra forma de se inscrever na história da Rita e também o estabelecimento de um texto perdido no arquivo da história do mundo. Nesta dupla função ela representa, mas também apresenta o irrepresentável. Dá notícias discretamente desta verdade perturbadora em um trabalho da língua, da memória, das peças soltas e, por isso mesmo, tem um efeito de verdade. Barbara é um significante e uma in-significância. Uma letra?

Bárbara é feita das ruínas da história familiar e é também feita da história de um país, de um povo. Numa das teses sobre o conceito de história, Walter Benjamin8 fala que se os inimigos não cessarem de vencer, nem os mortos estarão em segurança. Num primeiro momento, isto pode nos colocar diante da salvação, mas Benjamin a coloca precisamente nos momentos de perigo que se articulam à reminiscência, à proposição de que o passado se articula não ao que ele de fato foi, mas às forças e formas que determinaram seus regimes de verdade. Se apropriar das reminiscências em um momento de perigo tem esse efeito: sobrepor, no presente, esse passado que não cessa de passar, mostrar suas deformações que respondem aos mesmos mecanismos de poder de outrora, e articulá-lo é justamente colocar a contingência em jogo no que se via como destino. A análise representa, e neste sentido, lê e escreve, um tanto de coisas irrepresentáveis para um sujeito e, ao mesmo tempo, é uma prática que conserva um vazio, um vazio irrepresentável, onde a contingência pode operar, o ponto de indeterminação do sujeito que, nestas escritas que mencionei, se apresenta de formas inéditas porque partem de um ponto de ruptura com a história. Ali onde havia um destino para o povo negro, se escreve o indeterminado, e revela-se o sem-sentido da determinação com o que não entrou nos enredos da historicização.

Aqui a diferença entre memória e reminiscência9 ajuda a pensar. Arriscaria o seguinte: a memória pode ser lida, a reminiscência se escreve. A memória, embora seja diferente da história, sempre aumenta ou constrange um ponto da vida. E de algum modo ela pode ser contada como algo a mais ou a menos. A reminiscência não se encadeia, é a interrupção do texto porque não está em relação com o Outro, ou para recortarmos a conversa, com a História. Não seria isto também a lógica de um acontecimento? Bárbara, sua história e a escrita da sua história, é um ponto de ruptura no texto oficial da história. Ela será sempre um tanto opaca ao sentido e isso é muito bom porque é o que permite essa brecha que resiste à assimilação, mas ela é também um dos nomes da história, um ponto na constelação, sempre muito difícil de situar. Isso, me parece, leva em conta o corpo, porque toma para si a hesitação entre som e sentido, entre representação e irrepresentável. Mas não o corpo só como uma questão individual, e sim como corpo político cujos nomes como letras insistem no esforço de produzir outras línguas, de não deixar que línguas Outras desapareçam.


1 Analista Praticante, membro da EBP/AMP Seção Sul e associada ao ICPOL-SC.

2 Esta é uma versão parcial e um pouco modificada do texto que apresentei na abertura das atividades do Instituto Clin-a em março de 2022. Aqui desdobro algumas questões do texto "Dizer o indizível: um fazer" apresentado no XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.

3 LACAN. J. Lituraterra. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

4 PRINGENT, C. Para que poetas ainda? Desterro: Cultura e Barbárie, 2017.

5 Idem, p. 14.

6 O mesmo texto mencionado na primeira nota.

7 VIEIRA JUNIOR, I. Na vastidão do céu, a noite. Disponível em: https://suplementopernambuco.com.br/bot%C3%A3o-vermelho/2588-na-vastid%C3%A3o,-o-c%C3%A9u-da-noite.html

8 LÖWY, M. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Boitempo, São Paulo, 2005.

9 LACAN, J. O Seminario, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. E Miller, J.-A. Perspectivas do Seminário 23. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

 

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