O mal-estar da época: a criança e o discurso analítico
Conversação entre Núcleos:
Pandorga1 e Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Cultura2
Novembro de 2022
Foto: Gisele Gazzoni
Palavras-chave: Clínica psicanalítica com crianças; Famílias; Articulação-e-separação.
A partir da proposta de conversação entre núcleos de pesquisa do ICPOL-SC em 2022, iniciamos um movimento de aproximação entre o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Cultura (NPC) e o Pandorga - Núcleo de Pesquisa e Investigação Clínica de Psicanálise com Crianças. Tal aproximação ocorreu nos meses de setembro e outubro de 2022. As equipes de coordenação dos dois núcleos realizaram reuniões conjuntas e participaram, cada uma, de um encontro do núcleo interlocutor com o objetivo de conhecer um pouco de sua pesquisa. Num primeiro momento, procuramos encontrar um ponto de articulação nas pesquisas que pudesse provocar uma conversação, o que se apresentou como uma dificuldade. Avaliamos que faríamos melhor se, a partir da conversa que já vinha acontecendo, pudéssemos elaborar perguntas e esboçar respostas a serem levadas para o encontro final com os dois núcleos.
O Núcleo Pandorga, ao longo de 2022, pesquisou e discutiu o tema da Rede Cereda “Pais exasperados - Crianças terríveis”. Partindo da singularidade da clínica com crianças e adolescentes, do sintoma enquanto política da psicanálise e das configurações familiares no tecido social, o tema ressoa. Tratam-se de pais que não sabem o que fazer com os filhos e de filhos às voltas com as questões familiares. Os pais, desbussolados3, estão no limite em contraponto às crianças que parecem não ter limites. Diante disso, a pesquisa do Pandorga tem se detido no estatuto do pai na atualidade, o que nos convoca a pensar a família e a parentalidade.
O NPC, por sua vez, desde o ano de 2020, vem se dedicando a estudar uma série de acontecimentos e problemáticas sociais que tensionam a história, as relações sociais e a clínica psicanalítica. Investigou especialmente algumas incidências sobre os adolescentes (o aumento do número de suicídio) e sobre as mulheres (o feminicídio). Tudo isso nos diz que algo específico vem acontecendo e transforma o tecido social, em uma perspectiva histórica e cultural, que nos alcança e afeta enquanto analistas em nossos consultórios, em instituições de trabalho e na cidade. Diante desse cenário, o núcleo tomou como pesquisa para o ano de 2022 a questão de o que pode a psicanálise frente a isso.
A proposta de conversação entre estes dois núcleos partiu do NPC, que se interessou em discutir sobre a incidência do atual contexto sócio-político também sobre as crianças, a partir do que recolhemos em nossa clínica. Construindo a conversação, o Pandorga num primeiro momento traz a pergunta: “O que há de articulação entre a cultura e a clínica com crianças e adolescentes?”. Assim, esboça algumas respostas: a proliferação de diagnósticos-etiquetas no contexto da infância e adolescência; as configurações de famílias na “hipermodernidade”; os “novos” sintomas que afligem crianças e adolescentes massivamente; questões traumáticas em tempos pós-pandêmicos.
Desta pergunta, outras se abriram para o NPC. Considerando que os sujeitos de nossa prática, a partir da psicanálise, são sujeitos do inconsciente e uma vez que, conforme nos propôs Lacan, “o inconsciente é a política”4, ou, nos termos de Freud, “a psicologia individual é também, desde o início, psicologia social”5; então, não seria o caso de pensar o que não há de articulação entre cultura e clínica? Assim, para o NPC, lançou-se o desafio de pensar uma articulação não enquanto convergência de duas partes separadas que se encontram (a cultura e o sujeito da clínica), mas em termos topológicos, na forma de uma banda de Moebius. Nesse sentido, não se trata de pensar um dentro (o sujeito) e um fora (a cultura) da clínica, mas uma continuidade entre estes dois termos, um limite sem fronteiras entre cultura e sujeito e o que recolhemos disso em nossa clínica.
Posteriormente, o Pandorga problematiza a primeira questão colocada e propõe substituir o significante “articulação” por um hífen, tão caro à sua pesquisa. Questiona então: o que persiste nesse espaço que se abre entre cultura e clínica? Sugere como resposta que, nesse intervalo clínica-cultura, está precisamente o discurso analítico. A nova formulação da pergunta e a hipótese levantada suscitaram debates, já que no Pandorga vem se discutindo o estatuto do hífen e no NPC, o discurso analítico.
O hífen entre os pais exasperados e as crianças terríveis traz a discussão de um traço do equívoco, como aponta Daniel Roy6. Nohemí Brown, sobre o hífen, coloca: “Não é só a criança terrível e os pais que não sabem o que fazer. Entre um e outro há um laço de união e separação, no melhor dos casos. Uma nova forma de pensar a família. O insuportável na e da criança marca esse impasse”7. Na discussão da parentalidade, Brousse8 indica que esse termo supostamente dilui a diferença entre pai e mãe. Para Brousse, a parentalidade é uma das versões da modificação atual do discurso do mestre, trata-se de um significante que vem substituir o pai e a mãe, pertencendo à época dos Uns sozinhos separados e dispersos.
O Pandorga, então, seguiu discutindo as manifestações clínicas em que as famílias se confrontam pela via da parentalidade, situando caso a caso “as crianças terríveis” e permitindo pensar nas configurações de gozo de hoje marcadas pelo apogeu do “objeto a”. A parentalidade é pensada aqui como significante de “família” perante o objeto “criança”. Assim, o núcleo traz um caso que ilustra muito bem do que se trata. Milène, uma menina de 4 anos, pela noite sentava-se demoradamente na privada como tentativa sintomática de separação da mãe, que por sua vez a colocava no lugar “de tudo para ela”. Sem um pai de “carne e osso”, ou seja, fora de uma estrutura supostamente universal de família, Milène pôde constituir, em análise, um Nome-do-Pai que demarca, em sua posição subjetiva neurótica, uma separação da mãe. Milène interessa-se por um cantor objeto de desejo da mãe e esse interesse possibilita a constituição da função paterna. Assim, ela se constitui como desejante em seu romance particular quando percebe que a mãe deseja alguém além dela9.
O NPC, por sua vez, ao investigar o que pode a psicanálise frente a esses cenários cujas incidências nos sujeitos são tamanhas, pergunta: como pensar a presença do analista tanto na clínica, quanto na cultura? Observamos que o discurso dominante na cultura não é mais simplesmente o discurso do mestre, mas sua variante moderna, o discurso capitalista. Nas palavras de Fernanda Otoni Brisset, “o discurso capitalista promete e decreta para todos: Goze! Seja feliz!”10. Não é por acaso, então, que ao contrário dos demais discursos, o discurso capitalista promova uma ruptura dos laços sociais. Onde cada um está “entregue ao autismo nativo do ser”11, o outro, ou emerge como objeto de gozo, ou é segregado nos “novos campos de concentração”12. A esse respeito, o NPC questiona se não seriam os diagnósticos que, ao rotular as crianças, dão o exemplo desses novos campos que segregam a diferença. O triunfo do discurso capitalista marca, então, uma derrocada do desejo em relação ao gozo; e é aí que a criança pode aparecer como mais um objeto de gozo, tendo que se haver como pode para tentar se constituir como sujeito perante pais exasperados.
Mas e o discurso psicanalítico, o que marca sua diferença na forma de operar na cultura? Esta tem sido uma pergunta norteadora do NPC. Como pensar o lugar do psicanalista diante do mal-estar da época? O discurso do analista, mostra-nos Lacan, é justamente o avesso do discurso do mestre e, como tal, não promove “o eterno retorno do mesmo”13, mas visa à queda da uma ordem instituída, à subversão. A noção de subversão nos remete ao ato analítico, que ao traçar uma fronteira definitiva - como o Rubicão, atravessado por César –, subverte o sujeito, tirando-o de suas determinações. Isso porque, no ato analítico, as revoluções do sintoma são interrompidas e algo cai: ao atravessar o rio, não se é mais o mesmo. Frente ao vazio insurgente, Miller nos lembra que há salvação pelos dejetos. Precisamente, aquilo cuja existência faz furo no ideal resplandecente (da família do comercial de margarina e da criança perfeita, por exemplo) e, por isso mesmo, é segregado a todo o custo, pode ser elevado à dignidade da Coisa14. Logo, o gozo do Um pode ser entrelaçado ao discurso do Outro e se inscrever no laço social, ou seja, aquilo que é estranho pode ser integrado – seja na própria subjetividade, na família ou na civilização.
Em sua tentativa de pensar como o psicanalista pode operar na cidade, o NPC conclui que ao psicanalista resta transmitir aquilo que a clínica nos ensina, a saber, a existência do Real sem lei e do determinismo do gozo. Se os demais discursos tentam expelir os dejetos e suturar o impossível, e se o discurso capitalista promove um imperativo de gozo, o discurso analítico introduz justamente a força do impossível e a possibilidade de fazer algo com isso – algo diferente de simplesmente negar essa força ou recair na impotência diante do que não cessa de não se escrever. Frente aos ideais que se impõem como necessidade, a psicanálise lembra que a experiência humana é marcada pela contingência e pelo sem sentido. Se, por um lado, o discurso capitalista e o discurso da ciência comandam um “isso funciona”, a psicanálise sabe que “isso sempre falha”. Então, não se trata de fazer funcionar, mas de pensar que gambiarras são possíveis aí, como aquela produzida por Milène em análise.
O próprio discurso analítico emerge de forma contingente, não como regra. A categoria do impossível – que marca o Real – é alcançada pela via do contingente, que incide sobre os outros discursos, universais. Nesse sentido, o hífen, como um traço do equívoco, como trouxe o Pandorga, pode ser relacionado ao discurso analítico. O equívoco pode servir como saída para não tomar os discursos fechados, os diagnósticos sem furo. É aí que o NPC situa que a psicanálise, em vez de eliminar o sintoma e esterilizar o gozo, cura da cura. O discurso do analista, assim, pode contribuir para arejar os discursos, apontando que não há cidade asséptica e criança que corresponda aos ideais dos pais.
Desenvolvendo a metáfora do discurso analítico como hífen, podemos pensar então que o traço marca um afastamento, mas que da mesma forma permite uma conjunção: articulação-e-separação. Abre-se aí um espaço de respiro por onde o desejo pode circular contra o automatismo do gozo. O hífen, por exemplo, impede que os pais e a criança, tomada como objeto, façam Um. Permite, assim, uma gambiarra, uma costura que seja algo de provisório, e que funcione no um a um. Diferente do ponto final, que fecha todas as brechas, que mortifica, o hífen marca algo que não funciona e, sobretudo, deixa o espaço aberto para aquilo que pode ser e pode não ser, para a contingência.
REFERÊNCIAS:
BONNAUD, H. El inconsciente del niño. Del síntoma al deseo de saber. Navarin/Le Champ freudien, 2013.
BROUSSE, M. H. Un neologismo de actualidad: la parentalidad. Les nouvelles utopies de la famile. Revista La cause freudienne 60. L’École de la Cause Freudienne, Paris, Junio, 2005.
BROWN, Nohemí. Sobre a sexuação: A criança e seus pais. NRCereda, Brasil, junho, 2022.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 14.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do Eu. In. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. v. 15.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 14: a lógica do fantasma (1966-1967). Sessão de 10 maio 1967. Inédito.
MILLER, Jacques-Alain. A salvação pelos dejetos. Correio, v. 1, n. 1 (jun. 1993). São Paulo: Escola Brasileira de Psicanlálise, n. 67, 2010.
MILLER, Jacques-Alain. Uma fantasia. Opção Lacaniana, n. 42, janeiro, 2005.
OTONI BRISSET, Fernanda. Quando toca na divisão, a psicanálise faz política. Revista Curinga. Belo Horizonte: Ed. EBP MG, n. 35, p. 35-45, dezembro de 2012.
ROY, D. Pais exasperados, crianças terríveis. Texto de orientação para a 7ªJournée de l’Institut psychanalytique de l’Enfant.
1 Núcleo de Pesquisa e Investigação Clínica de Psicanálise com Crianças- Comissão de Trabalho: Maria Luíza R. Cidade, Marcia O. Frassão (Coordenadoras), Flávio Desgranges, Jussara Jovita S. Rosa, Soledade Torres e Valesca M. Lopes.
2 Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Cultura. Equipe de coordenação 2022.2: Sandra Cristina da Silveira (coordenadora), William Hamilton Leiria, Julian Pegoraro Silvestrin e Dieggo Cervelin.
3 MILLER, Jacques-Alain. Uma fantasia. In: Opção Lacaniana, n. 42, janeiro, 2005, p. 7.
4 LACAN, Jacques. O seminário, livro 14: a lógica do fantasma (1966-1967). Sessão de 10 maio 1967. Inédito.
5 FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do Eu. In. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. v. 15. p. 14.
6 ROY, D. Pais exasperados, crianças terríveis. Texto de orientação para a 7ªJournée de l’Institut psychanalytique de l’Enfant.
7 BROWN, N. Sobre a sexuação: A criança e seus pais- NRCereda - Brasil, junho, 2022.
8 BROUSSE, M.H. Un neologismo de actualidad: la parentalidad. Les nouvelles utopies de la famile. Revista La cause freudienne 60. L'École de la Cause Freudienne, Paris, Junio, 2005.
9 Caso disponível em: BONNAUD, H. El inconsciente del niño. Del síntoma al deseo de saber. Navarin/Le Champ freudien, 2013.
10 OTONI BRISSET, Fernanda. Quando toca na divisão, a psicanálise faz política. Revista Curinga 35. Belo Horizonte: Ed. EBP MG, n.35, p. 35-45, dezembro de 2012. p. 38.
11 Ib.
12 Ib.
13 FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 14. p. 182.
14 MILLER, Jacques-Alain. A salvação pelos dejetos. Correio, v. 1, n.1 (jun. 1993). São Paulo: Escola Brasileira de Psicanlálise, n. 67, 2010.